Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 14 de maio de 2017

Eugénio de Andrade - Poema à mãe

O poeta despede-se mentalmente da mãe – “e parte com as aves”. Não exatamente como na imagem que perdura “no fundo dos seus olhos” – ele ainda criança, com rosas brancas junto ao peito –, mas já adulto, a cruzar o mundo nas planuras de suas próprias asas.

As palavras trocadas entre mãe e filho deixaram de expressar a ternura de antes, tornando-se duras por vezes – um velado brado de emancipação –, porque, para uma mãe, mesmo um filho (ou filha) adulto (adulta) há de ser para sempre um guri (uma guria), tal que disso acabe por resultar o embotamento da maturidade dos rebentos.

Mas, de qualquer modo, tudo o que ocorre numa relação entre pais e filhos remanesce na memória de ambos – para o bem e para o mal –, a percutir por todos os escaninhos dos espíritos ainda em formação!

J.A.R. – H.C.

Eugénio de Andrade
(n. 1923-2005)

Poema à mãe

No mais fundo de ti,
eu sei que te traí, mãe!

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos!

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noite rumorosas de águas matinais!

Por isso, às vezes as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura!

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos ...

Mas tu esqueceste muita coisa!
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha, queres ouvir-me?:
às vezes ainda sou o retrato
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas – tu sabes! – a noite é enorme
e todo meu corpo cresceu...
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas...

Boa noite. Eu vou com as aves!

Mãe e Criança
(Pablo Picasso: pintor espanhol)

Referência:

ANDRADE, Eugénio de. Poema à mãe. In: __________. Poemas: 1945-1965. Lisboa, PT: Portugália, 1966. p. 81.

Nenhum comentário:

Postar um comentário