O poeta despede-se mentalmente da mãe –
“e parte com as aves”. Não exatamente como na imagem que perdura “no fundo dos seus
olhos” – ele ainda criança, com rosas brancas junto ao peito –, mas já adulto, a
cruzar o mundo nas planuras de suas próprias asas.
As palavras trocadas entre mãe e filho deixaram
de expressar a ternura de antes, tornando-se duras por vezes – um velado brado
de emancipação –, porque, para uma mãe, mesmo um filho (ou filha) adulto
(adulta) há de ser para sempre um guri (uma guria), tal que disso acabe por
resultar o embotamento da maturidade dos rebentos.
Mas, de qualquer modo, tudo o que
ocorre numa relação entre pais e filhos remanesce na memória de ambos – para o
bem e para o mal –, a percutir por todos os escaninhos dos espíritos ainda em
formação!
J.A.R. – H.C.
(n. 1923-2005)
Poema à mãe
No mais fundo de ti,
Tudo porque já não
sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus
olhos!
Tudo porque tu
ignoras
que há leitos onde o
frio não se demora
e noite rumorosas de
águas matinais!
Por isso, às vezes as
palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é
infeliz.
Tudo porque perdi as rosas
brancas
que apertava junto ao
coração
no retrato da
moldura!
Se soubesses como
ainda amo as rosas,
talvez não enchesses
as horas de pesadelos ...
Mas tu esqueceste
muita coisa!
Esqueceste que as
minhas pernas cresceram,
que todo meu corpo
cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha, queres
ouvir-me?:
às vezes ainda sou o
retrato
que adormeceu nos
teus olhos;
ainda aperto contra o
coração
rosas tão brancas
como as que tens na
moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas – tu sabes! – a
noite é enorme
e todo meu corpo
cresceu...
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus
olhos a beber.
Não me esqueci de
nada, mãe.
Guardo a tua voz
dentro de mim.
E deixo-te as
rosas...
Boa noite. Eu vou com
as aves!
Mãe e Criança
(Pablo Picasso:
pintor espanhol)
Referência:
ANDRADE, Eugénio de. Poema à mãe. In:
__________. Poemas: 1945-1965. Lisboa,
PT: Portugália, 1966. p. 81.
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