No ambiente da cozinha, o poeta conjuga, no presente do indicativo, os
diversos verbos associados ao ato de se preparar uma salada, ao descrever
alguém do sexo feminino que leva à frente tal tarefa, para a qual são necessários
“vários gestos precisos e uma poética discreta nos brilhos frisados, nos
paladares”.
Estar ali, interagindo com “ela”, faz-lhe recordar alguns versos
populares que comparam os seus olhos a azeitonas pretas, enquanto a vida
transcorre normalmente à volta, ou melhor, na rua, com ciclistas e crianças a
brincar, como se pode inferir pelo ruído das campainhas de bicicleta e pelo
quicar da bola.
J.A.R. – H.C.
Vasco Graça Moura
(1942-2014)
presente do
indicativo
entro na cozinha. ela
está no meio dos legumes,
lava e enxuga folhas
tenras de alface, endívias
de oblonga
contextura, corta a cebola às
rodelas, pica um ramo
de coentros,
hesita um pouco sobre
o roquefort, é certeira no vinagre e no sal,
e prudente no azeite,
o ovo cozido espera a sua vez e a
saladeira aguarda na
mesa junto aos azulejos brancos.
ela procura os
talheres de madeira na gaveta,
pede-me qualquer
coisa, a lâmina reluz sobre a tábua, perto do pão.
a preparação da
salada requer vários gestos precisos
e uma poética
discreta nos brilhos frisados, nos
paladares. pela
janela chegam os ruídos da rua,
campainhas de
bicicleta, ressaltos de uma bola.
o cão dormita no sofá. uns versos populares comparam
os olhos dela a
azeitonas pretas.
Em: “A furiosa paixão
pelo tangível” (1987)
Servente na Cozinha
(David Teniers, o
Jovem: artista flamengo)
Referência:
MOURA, Vasco Graça. presente do
indicativo. In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (Organização e
Introdução). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama.
Rio de Janeiro, RJ: Lacerda Editores, 1999. p. 366.
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