O poeta francês do medievo traz-nos
divertimento com um catálogo de expressões com a fórmula “não ‘a’ mas ‘b’”, implacavelmente
reiterada em toda a balada, deixando transparecer que o seu denominador comum não
é uma noção capaz de solucionar os paradoxos lançados, senão uma estrutura
lógica que deles mais se acerca, em vez de elidir as desconcertantes
contradições.
Verdades não se firmam em algumas
expressões, mas apenas o gracioso, como na máxima “Não se gera mais do que nos
banhos”. Afinal, seria divertido, embora não impossível, se alguma garota afirmasse que concebeu em
razão do esperma difundido na água da banheira (rs).
Gracejo sobre o gracejo: o tradutor
alerta que o verso alude às casas de banho da época, que, por vezes, faziam as
vezes de bordéis, em uma época na qual os contraceptivos não eram tão eficazes
como os de hoje em dia.
J.A.R. – H.C.
François Villon
(1431-1463)
Ballade des
contre-vérités
Il n’est soin que
quand on a faim
Ne service que d’ennemi,
Ne mâcher qu’un botel
de fain,
Ne fort guet que d’homme
endormi,
Ne clémence que
félonie,
N’assurance que de
peureux,
Ne foi que d’homme
qui renie,
Ne bien conseillé qu’amoureux.
Il n’est engendrement
qu’en boin
Ne bon bruit que d’homme
banni,
Ne ris qu’après un
coup de poing,
Ne lotz que dettes
mettre en ni,
Ne vraie amour qu’en
flatterie,
N’encontre que de
malheureux,
Ne vrai rapport que
menterie,
Ne bien conseillé qu’amoureux.
Ne tel repos que
vivre en soin,
N’honneur porter que
dire: “Fi!”,
Ne soi vanter que de
faux coin,
Ne santé que d’homme
bouffi,
Ne haut vouloir que
couardie,
Ne conseil que de
furieux,
Ne douceur qu’en
femme étourdie,
Ne bien conseillé qu’amoureux.
Voulez-vous que verté
vous dire?
Il n’est jouer qu’en
maladie,
Lettre vraie qu’en
tragédie,
Lâche homme que
chevalereux,
Orrible son que
mélodie,
Ne bien conseillé qu’amoureux.
Vista de Boston a
partir de North Point Park
(Christopher
Chippendale: pintor norte-americano)
Balada das
contraverdades
Não há desvelos senão
com a fome,
Nem favores que os de
inimigos,
Nem mais gosto a quem
o feno come,
Nem vigília que o
sono amigo,
Nem clemência que a
felonia,
Nem firmeza que a dos
medrosos,
Nem mais fé que na
apostasia,
Nem mais juízo que em
amorosos.
Não se gera mais do
que nos banhos, (*)
Nem há mais renome
que em bandidos,
Nem ri-se mais do que
quem apanha
Nem mais honra que
negar o devido,
Nem amor que na
lisonjeria,
Nem encontro que o de
inditosos,
Nem bons laços que na
hipocrisia,
Nem mais juízo que em
amorosos.
Não há mais paz que a
do fadário,
Nem mais louvor que
dizer: “Fora!”
Nem vanglória que a
do falsário,
Nem saúde que na
descora,
Nem audácia que em
covardia,
Nem bom senso que em
furiosos,
Nem dulçor que em
mulher bravia,
Nem mais juízo que em
amorosos.
Verdade quereis que
vos diga?
Isto: o prazer só na
anemia,
Lição veraz só a
lenda abriga,
Langor não há mais
que em valorosos,
O horrível som que em
melodia,
Nem mais juízo que em
amorosos.
Nota do Tradutor:
(*) Alusão às casas públicas de banho,
que muitas vezes eram disfarces para os “festoyements avec femmes” (“festins
com as mulheres”) (cf. Thuasne).
Referência:
VILLON, François. Ballade des
contre-vérités / Balada das contraverdades. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. In: __________. Poesia.
Tradução, organização e notas de Sebastião Uchoa Leite. Edição bilíngue. São
Paulo, SP: Edusp, 2000. Em francês: p. 320 e 322; em português: p. 321 e 323.
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