O poeta das Alagoas celebra o domínio do inexprimível, presente mesmo
além da materialidade do mundo, ali onde tudo é encantamento, incapaz de ser
apreendido pelas normas da racionalidade humana, circunscrita ao imediatismo
que nos é cobrado pela mecânica do universo.
Nesse contexto, por trás desse moto-contínuo atribulado, são as
circunstâncias extraordinárias do sobrenatural que presidem o roteiro maior do qual
nos ocupamos em nossa lida. Afinal, temos necessidade de anjos para sermos homens
e poetas...
J.A.R. – H.C.
Lêdo Ivo
(1924-2012)
A Descoberta do Inefável
A Lêda
Sem o sublime, que é
o poeta? Sem o inefável,
como pode louvar, não
traindo a si mesmo,
a plena e estranha
juventude da moça a quem ama?
Que é o poeta, que
imita as marés,
sem adquirir com o
tempo uma serenidade de coisa sempre nua
como se as estrelas
estivessem caminhando governadas
pelo seu riso
e seus braços
agitassem as árvores feridas pelo clarão da lua?
Sem que seu canto
suba até os céus, sufocante música da terra,
que é o poeta?
Libertado estou
quando canto. E quero
que minha respiração
oriente a vontade das nuvens
e meu pensamento de
amor se misture ao horizonte.
Cantando, quero
outubro, gosto de lágrima, salsugem,
no instante anterior
ao despertar, folha voando.
Sem o inefável, que
dura sempre, sem permanecer,
como conseguirei
louvar essa moça a quem amo
e que nasce em minha
lembrança plena como a noite
e triunfante como uma
rosa que durasse eternamente
e não se limitasse à
glória de um dia?
Sem o inefável, que
valoriza as mãos e faz o Amor voar,
não poderei descer de
repente
ao inferno de seu
corpo nu.
O sobrenatural ainda
existe. E não seremos nós
que alteraremos a
indizível ordem das coisas
com as nossas mãos
que poderão ficar imóveis
em pleno amor, diante
do corpo amado.
É inútil pensar que
os anjos morreram
ou se despaisaram,
buscando outros lugares.
Eles ainda estão,
unidade admirável do Dia e da Noite,
entre as nuvens e as
casas em que moramos.
Repentinamente, as
vozes da infância nos chamam para a
feérica viagem
e lembram que podemos
fugir para o longe guardado ainda
no sempre.
Então, nossas
necessidades não se reduzem apenas a comer,
dormir e amar.
Temos necessidade de
anjos, para ser homens.
Temos necessidade de
anjos, para ser poetas.
Vem, incontável
música, e anuncia
(ao poeta e ao homem,
humilde unidade)
a ressurreição diária
dos anjos.
Restaura em mim a
certeza de que a folha voando é
seu indomável
divertimento
pois às vezes sinto
que meu primeiro verso foi murmurado talvez
sem que eu soubesse,
por um anjo
perturbado com o meu
ar desesperado de papel em branco.
Não é a manhã,
depositando a semente de alegria no coração
dos homens.
Não é a vida, cântico
triunfal descendo sobre as almas.
Não é o poeta,
subindo pelos andaimes de carne da lembrança
de uma mulher.
São os anjos, que
vieram ligar-nos mais uma vez
à ordem eterna e, à
anunciação.
Não nos libertaremos
jamais desses anjos
feitos de terra e
mar, celestes criaturas
que deixam cair em
nós o sol da harmonia.
É inútil matar os
anjos.
Eles são invisíveis e
traiçoeiros.
De repente, quando
nos sentimos seguros, já não somos
os consumidores de
instantes, e estamos
entre o Dia e a
Noite, no umbral
de uma eternidade
vigiada pelos anjos.
Luz & Forma Inefáveis
(G. E. Hayman:
pintora norte-americana)
Referência:
IVO, Lêdo. A descoberta do inefável. In:
__________. Os melhores poemas de Lêdo
Ivo. Seleção de Sérgio Alves Peixoto. 2. ed. São Paulo, SP: Global, 1990.
p. 46-48. (Série “Os Melhores Poemas”, n. 2)
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