A parodiar o muito conhecido “Sermão da Montanha”, contido, em seu
inteiro teor, no Evangelho de Mateus
(caps. 5-7), e com o mesmo tom do “Sermão do Diabo”,
de Machado de Assis, este poema de Campos ironiza dos cegos e aleijados aos
bêbados e deformados.
O poeta afirma que as misérias da poesia são sintetizadas pelos
indigentes e, no mesmo diapasão, os mendigos pertencem às searas mitológicas. Caso
usássemos as regras da lógica matemática, se A=B e A=C, então B=C. Em suma, se
A forem os mendigos ou indigentes, resulta que as misérias da poesia (B)
concernem ao domínio das searas mitológicas (C). Será que tal conclusão faria
algum sentido?! (rs).
J.A.R. – H.C.
Paulo Mendes Campos
(1922-1991)
Sermão do Diabo
Bem aventurados os
aleijados porque não distinguem as proporções dos
sentimentos morais e
desenham triângulos tortos na areia.
Bem-aventurados os
cegos de nascença porque rangem quando rangem
nas curvas os astros
do cosmos sem música.
Bem-aventuradas as
mulheres feias porque trocam sinais com a Via-Láctea
e são tangíveis a
todas as semáforas.
Bem-aventurados os
que morrem nas catástrofes ferroviárias porque a vida
foi de repente a
sinistra aventura.
Bem-aventurados os
desequilibrados líricos porque inventam tristes
gnomonias.
Bem-aventurados os
que perdem os filhos porque, incendiados, são hábeis
em distinguir a estrela do naufrágio.
Bem-aventurados os
mendigos porque pertencem às searas mitológicas.
Bem-aventurados os
suicidas porque chegam de armas na mão ao outro
lado.
Bem-aventurados os
indigentes porque resumem as misérias da poesia.
Bem-aventurados os
bêbados sem remédio porque se extinguem no
crepúsculo como o
carvão.
Bem-aventurado o que
alimenta um mal secreto porque pode telefonar à
hiena e convidá-la
para jantar.
Bem-aventurado o
indivíduo que tem o rosto deformado porque pode
olhar a morte nos
olhos e interrogá-la.
Bem-aventurados enfim
todos os homens, todas as mulheres, todos os
bichos, bem-aventurados
o fogo e a água, bem-aventuradas
as pedras e as
relvas, bem-aventurados o Deus que cria o universo
e o demônio que o
perdoa.
Lúcifer
(Gravura de Gustave
Doré para
“O Paraíso Perdido”,
de John Milton)
Referência:
CAMPOS, Paulo Mendes. Sermão do diabo.
In: __________. Os melhores poemas de
Paulo Mendes Campos. 2. ed. Seleção de Guilhermino Cesar. São Paulo, SP:
Global, 1997. p. 50. (“Os Melhores Poemas”; v. 22)
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