Escritor, poeta e teórico do surrealismo, Breton se expressa, neste poema, livre de todos os constrangimentos, de forma a permitir o fluxo natural do que
lhe vem à mente: são sentimentos ambivalentes em relação à sua mulher, ora
exprimindo afeto por ela, ora evocando imagens distorcidas em conjunção com
partes do corpo feminino, como nas pinturas dos renomados artistas que adotaram
tal tendência estética.
Essa forma de escrita automática acarreta associações desconexas ou
ilógicas, por vezes bizarras, entre diferentes pensamentos, ideias ou representações.
Há nela referentes eróticos, oníricos, encerrados num longo encadeamento de
anáforas e metáforas, quase todo voltado a descrever elementos físicos de sua
parceira, raramente psicológicos ou comportamentais.
J.A.R. – H.C.
André Breton
(1896-1966)
L’Union Libre
Ma femme à la
chevelure de feu de bois
Aux pensées d’éclairs
de chaleur
A la taille de
sablier
Ma femme à la taille
de loutre entre les dents du tigre
Ma femme à la bouche
de cocarde et de bouquet d’étoiles de
dernière grandeur
Aux dents
d’empreintes de souris blanche sur la terre blanche
A la langue d’ambre
et de verre frottés
Ma femme à la langue
d’hostie poignardée
A la langue de poupée
qui ouvre et ferme les yeux
A la langue de pierre
incroyable
Ma femme aux cils de
bâtons d’écriture d’enfant
Aux sourcils de bord
de nid d’hirondelle
Ma femme aux tempes
d’ardoise de toit de serre
Et de buée aux vitres
Ma femme aux épaules
de champagne
Et de fontaine à
têtes de dauphins sous la glace
Ma femme aux poignets
d’allumettes
Ma femme aux doigts
de hasard et d’as de cœur
Aux doigts de foin
coupé
Ma femme aux
aisselles de martre et de fênes
De nuit de la
Saint-Jean
De troène et de nid
de scalares
Aux bras d’écume de
mer et d’écluse
Et de mélange du blé
et du moulin
Ma femme aux jambes
de fusée
Aux mouvements
d’horlogerie et de désespoir
Ma femme aux mollets
de moelle de sureau
Ma femme aux pieds
d’initiales
Aux pieds de
trousseaux de clés aux pieds de calfats qui boivent
Ma femme au cou
d’orge imperlé
Ma femme à la gorge
de Val d’or
De rendez-vous dans
le lit même du torrent
Aux seins de nuit
Ma femme aux seins de
taupinière marine
Ma femme aux seins de
creuset du rubis
Aux seins de spectre
de la rose sous la rosée
Ma femme au ventre de
dépliement d’éventail des jours
Au ventre de griffe
géante
Ma femme au dos
d’oiseau qui fuit vertical
Au dos de vif-argent
Au dos de lumière
A la nuque de pierre
roulée et de craie mouillée
Et de chute d’un verre dans lequel on vient de
boire
Ma femme aux hanches
de nacelle
Aux hanches de lustre
et de pennes de flèche
Et de tiges de plumes
de paon blanc
De balance insensible
Ma femme aux fesses
de grès et d’amiante
Ma femme aux fesses
de dos de cygne
Ma femme aux fesses
de printemps
Au sexe de glaïeul
Ma femme au sexe de
placer et d’ornithorynque
Ma femme au sexe
d’algue et de bonbons anciens
Ma femme au sexe de
miroir
Ma femme aux yeux
pleins de larmes
Aux yeux de panoplie
violette et d’aiguille aimantée
Ma femme aux yeux de
savane
Ma femme aux yeux d’eau pour boire en prison
Ma femme aux yeux de
bois toujours sous la hache
Aux yeux de niveau
d’eau, de niveau d’air de terre et de feu.
(1931)
Às Duas Menos Um Quarto
(Chelin Sanjuan
Piquero: artista espanhola)
A União Livre
Minha mulher com o
cabelo de fogo de lenha
Com pensamentos de
relâmpagos de calor
Com a cintura de
ampulheta
Minha mulher com a
cintura de lontra entre os dentes de tigre
Minha mulher com a
boca de cocar e de buquê de estrelas de
última magnitude
Com dentes de marcas
de rato branco sobre a terra branca
Com a língua de âmbar
e de vidro atritados
Minha mulher com a
língua de hóstia apunhalada
Com a língua de
boneca que abre e fecha os olhos
Com a língua de pedra
inacreditável
Minha mulher com
cílios de traços de escrita infantil
Com sobrancelhas de
borda de ninho de andorinha
Minha mulher com
têmporas de ardósia de teto de estufa
E de vapor sobre
vidraças
Minha mulher com
ombros de champanhe
E de fonte com
cabeças de golfinhos sob o gelo
Minha mulher com
pulsos de palitos de fósforo
Minha mulher com
dedos de azar e ás de copas
Com dedos de feno
ceifado
Minha mulher com
axilas de marta e de faias
De noite de São João
De ligustro e de
ninho de acarás
Com braços de espuma
de mar e de eclusa
E de mistura do trigo
e do moinho
Minha mulher com
pernas de rojão
Com movimentos de
relojoaria e de desespero
Minha mulher com
panturrilhas de tutano de sabugueiro
Minha mulher com pés
de iniciais
Com pés de porta-chaves,
com pés de calafates que bebem
Minha mulher com pescoço
de cevada não perolada
Minha mulher com garganta
do Vale do ouro
De encontro no leito
mesmo da torrente
Com seios de noite
Minha mulher com
seios de toupeira marinha
Minha mulher com
seios de crisol de rubis
Com os seios de
espectro da rosa sob o orvalho
Minha mulher com o ventre
a se desdobrar no leque dos dias
Com ventre de garra
gigante
Minha mulher com
dorso de pássaro que foge vertical
Com dorso de azougue
Com dorso de luz
Com a nuca de pedra
rolada e de giz molhado
E de queda de um copo
do qual se acaba de beber
Minha mulher com
quadris de gôndola
Com quadris de lustre
e de penas de flecha
E de hastes de penas
de pavão branco
De balança insensível
Minha mulher com
nádegas de arenito e de amianto
Minha mulher com
nádegas de dorso de cisne
Minha mulher com
nádegas de primavera
Com sexo de gladíolo
Minha mulher com sexo
de mina d’ouro e de ornitorrinco
Minha mulher com sexo
de algas e de bombons antigos
Minha mulher com sexo
de espelho
Minha mulher com
olhos cheios de lágrimas
Com olhos de panóplia
violeta e de agulha imantada
Minha mulher com
olhos de savana
Minha mulher com
olhos d’água para beber no cárcere
Minha mulher com
olhos de lenha sempre sob o machado
Com olhos de nível
d’água, de nível de ar de terra e de fogo.
(1931)
Referência:
BRETON, André. L’union libre. In: SEGHERS, Pierre (Réuni, présenté et
commenté). Le livre d’or de la poésie
française: des origines a 1940. Vervieres, BE: Marabout Université, 1972. p. 402-403.
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