Cesário Verde é reputado como um dos grandes nomes da poesia lírica portuguesa,
mesmo havendo vivido tão pouco: ele tinha apenas 31 anos quando faleceu em
razão da tuberculose que contraíra, deixando, além de seus pontos comerciais,
um total de quarenta poemas dispersos.
Sobre o longo poema que ora selecionamos, Anna M. Klobucka, pertencente
ao Departamento de Português da Universidade de Massachusetts, Dartmouth,
sumaria com muita propriedade o que nele se esboça:
“O poeta é um retardatário. Ele se demora nas ruas de Lisboa, ao
entardecer e através da noite. Ao mesmo tempo, sem rumo e cheio de propósitos, caminha até a margem do rio e volta-se para as vitrines iluminadas do distrito
comercial. Ele entra e sai de vielas, tabernas e lojas de departamento. Esquadrinha
imagens, sons, cheiros, e insights; tece metáforas enérgicas diante dos olhos
de seus leitores. E em seu movimento constante e imprevisível, permanece
precariamente equilibrado no limite: no limite da Europa (abandonado em sua
periferia ocidental, longe do “Madrid, Paris, Berlim, São Petersburgo, o
mundo!”); no limite do tempo, examinando o passado e o futuro de seu país do
ponto de vista de um presente instável; e à beira de colapso físico e nervoso, enquanto
a beleza, a perfeição e a imortalidade acenam para ele sedutoramente, apenas
para ir-se além” (KLOBUCKA, 2011, p. 7).
J.A.R. – H.C.
Cesário Verde
(1855-1886)
O Sentimento dum Ocidental
A Guerra Junqueiro
I
Ave-Marias
Nas nossas ruas, ao
anoitecer,
Há tal soturnidade,
há tal melancolia,
Que as sombras, o
bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um
desejo absurdo de sofrer.
O céu parece baixo e
de neblina,
O gás extravasado
enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com
as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor
monótona e londrina.
Batem carros de
aluguel, ao fundo,
Levando à via férrea
os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista
exposições, países:
Madrid, Paris,
Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
Semelham-se a
gaiolas, com viveiros,
As edificações
somente emadeiradas:
Como morcegos, ao
cair das badaladas,
Saltam de viga em
viga os mestres carpinteiros.
Voltam os calafates,
aos magotes,
De jaquetão ao ombro,
enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a
cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a
que se atracam botes.
E evoco, então, as crônicas
navais:
Mouros, baixéis,
heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul,
salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus
que eu não verei jamais!
E o fim da tarde
inspira-me; e incomoda!
De um couraçado
inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir
de louças e talheres
Flamejam, ao jantar
alguns hotéis da moda.
Num trem de praça
arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim
braceja numas andas;
Os querubins do lar
flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo,
enfadam-se os lojistas!
Vazam-se os arsenais
e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio;
apressam-se as obreiras;
E num cardume negro,
hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza,
assomam as varinas.
Vêm sacudindo as
ancas opulentas!
Seus troncos varonis
recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça,
embalam nas canastras
Os filhos que depois
naufragam nas tormentas.
Descalças! Nas
descargas de carvão,
Desde manhã à noite,
a bordo das fragatas;
E apinham-se num
bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera
os focos de infecção!
II
Noite Fechada
Toca-se às grades, nas
cadeias. Som
Que mortifica e deixa
umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje
estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra
uma mulher de “dom”!
E eu desconfio, até,
de um aneurisma
Tão mórbido me sinto,
ao acender das luzes;
À vista das prisões,
da velha Sé, das cruzes,
Chora-me o coração
que se enche e que se abisma.
A espaços,
iluminam-se os andares,
E as tascas, os
cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os
seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o
circo e os jogos malabares.
Duas igrejas, num
saudoso largo,
Lançam a nódoa negra
e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo
inquisidor severo,
Assim que pela
História eu me aventuro e alargo.
Na parte que abateu
no terremoto,
Muram-me as
construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no
resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger
monástico e devoto.
Mas, num recinto
público e vulgar,
Com bancos de namoro
e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental,
de proporções guerreiras,
Um épico doutrora
ascende, num pilar!
E eu sonho o Cólera,
imagino a Febre,
Nesta acumulação de
corpos enfezados;
Sombrios e espectrais
recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio
em face de um casebre.
Partem patrulhas de
cavalaria
Dos arcos dos
quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé,
outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda
a capital, que esfria.
Triste cidade! Eu
temo que me avives
Uma paixão defunta!
Aos lampiões distantes,
Enlutam-me,
alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às
montras dos ourives.
E mais: as
costureiras, as floristas
Descem dos magazines,
causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar
os seus pescoços altos
E muitas delas são
comparsas ou coristas.
E eu, de luneta de
uma lente só,
Eu acho sempre
assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie;
às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz
joga-se o dominó.
III
Ao Gás
E saio. A noite pesa,
esmaga. Nos
Passeios de lajedo
arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais!
Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia
os ombros quase nus.
Cercam-me as lojas,
tépidas. Eu penso
Ver círios laterais,
ver filas de capelas,
Com santos e fiéis,
andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um
comprimento imenso.
As burguesinhas do
Catolicismo
Resvalam pelo chão
minado pelos canos;
E lembram-me, ao
chorar doente dos pianos,
As freiras que os
jejuns matavam de histerismo.
Num cuteleiro, de
avental, ao torno,
Um forjador maneja um
malho, rubramente;
E de uma padaria
exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e
honesto a pão no forno.
E eu que medito um
livro que exacerbe,
Quisera que o real e
a análise mo dessem;
Casas de confecções e
modas resplandecem;
Pelas vitrines olha
um ratoneiro imberbe.
Longas descidas! Não
poder pintar
Com versos
magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos
vossos revérberos,
E a vossa palidez
romântica e lunar!
Que grande cobra, a
lúbrica pessoa,
Que espartilhada
escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai,
magnética, entre luxo,
Que ao longo dos
balcões de mogno se amontoa.
E aquela velha, de
bandós! Por vezes,
A sua traine imita um
leque antigo, aberto,
Nas barras verticais,
a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória,
os seus meclemburgueses.
Desdobram-se tecidos
estrangeiros;
Plantas ornamentais
secam nos mostradores;
Flocos de
pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins
requebram-se os caixeiros.
Mas tudo cansa!
Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como
estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um
cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus
as armações fulgentes.
“Dó da miséria!...
Compaixão de mim!...”
E, nas esquinas,
calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me esmola um
homenzinho idoso,
Meu velho professor
nas aulas de Latim!
III
Horas Mortas
O tecto fundo de oxigênio,
de ar,
Estende-se ao
comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz
dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera
azul de transmigrar.
Por baixo, que
portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas
lajes, às escuras:
Colocam-se taipais,
rangem as fechaduras,
E os olhos dum
caleche espantam-me, sangrentos.
E eu sigo, como as
linhas de uma pauta
A dupla correnteza
augusta das fachadas;
Pois sobem, no
silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de
uma longínqua flauta.
Se eu não morresse,
nunca! E eternamente
Buscasse e
conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever
castíssimas esposas,
Que aninhem em
mansões de vidro transparente!
Ó nossos filhos! Que
de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão
a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas
mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações
translúcidas e frágeis.
Ah! Como a raça ruiva
do porvir,
E as frotas dos avós,
e os nômades ardentes,
Nós vamos explorar
todos os continentes
E pelas vastidões
aquáticas seguir!
Mas se vivemos, os
emparedados,
Sem árvores, no vale
escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na
treva, as folhas das navalhas
E os gritos de
socorro ouvir, estrangulados.
E nestes nebulosos
corredores
Nauseiam-me,
surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com
saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço
dado, uns tristes bebedores.
Eu não receio,
todavia, os roubos;
Afastam-se, a
distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar,
ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os
cães parecem lobos.
E os guardas, que
revistam as escadas,
Caminham de lanterna
e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais,
nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre
a pedra das sacadas.
E, enorme, nesta
massa irregular
De prédios
sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os
amplos horizontes,
E tem marés, de fel,
como um sinistro mar!
Lisboa
(Almeida Coval:
pintor português)
Referências:
KLOBUCKA, Anna M. Preface. In: VERDE, Cesário. The feeling of a western / O sentimento dum ocidental. A bilingual
edition. Edition by Victor K. Mendes. Translated from the portuguese by Richard
Zenith. Dartmouth, MA: University of Massachusetts Dartmouth, 2011. Disponível neste endereço.
Acesso em: 27 abr. 2016.
VERDE, Cesário. O sentimento dum
ocidental. In: MILLIET, Sérgio (Seleção e notas). Obras-primas da poesia universal. 3. ed. São Paulo, SP: Livraria
Martins Editora, 1957. p. 161-167.
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