Este poema do poeta amazonense Thiago de Mello já foi traduzido para
muitos idiomas. Dispõe ele de um linguajar poético estilizado e contemporâneo, engajado
politicamente em relação a um tempo no qual as liberdades democráticas foram
confrangidas na América Latina, como nos anos 60 e 70 do século passado.
Mas o ativismo de Mello não se exprime apenas no domínio político: no
campo social manifesta-se também ele, na medida em que defende a floresta
amazônica como reserva ecológica chave para a humanidade, além de ampla justiça
social para os povos que nela habitam.
J.A.R. – H.C.
Thiago de Mello
(n. 1926)
Os Estatutos do Homem
(Ato Institucional
Permanente)
A Carlos Heitor Cony
Artigo I
Fica decretado que
agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos
pela vida verdadeira.
Artigo II
Fica decretado que
todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras
mais cinzentas,
têm direito a converter-se
em manhãs de domingo.
Artigo III
Fica decretado que, a
partir deste instante,
haverá girassóis em
todas as janelas,
que os girassóis
terão direito
a abrir-se dentro da
sombra;
e que as janelas devem
permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde
onde cresce a esperança.
Artigo IV
Fica decretado que o
homem
não precisará nunca
mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará
no homem
como a palmeira
confia no vento,
como o vento confia
no ar,
como o ar confia no
campo azul do céu.
Parágrafo único:
O homem confiará no
homem
como um menino confia
em outro menino.
Artigo V
Fica decretado que os
homens
estão livres do jugo
da mentira.
Nunca mais será
preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de
palavras.
O homem se sentará à
mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade
passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo VI
Fica estabelecida,
durante dez séculos,
a prática sonhada
pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro
pastarão juntos
e a comida de ambos
terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII
Por decreto
irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente
da justiça e da claridade,
e a alegria será uma
bandeira generosa
para sempre
desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII
Fica decretado que a
maior dor
sempre foi e será
sempre
não poder dar-se amor
a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o
milagre da flor.
Artigo IX
Fica permitido que o
pão de cada dia
tenha no homem o
sinal de seu suor.
Mas que sobretudo
tenha
sempre o quente sabor
da ternura.
Artigo X
Fica permitido a
qualquer pessoa,
qualquer hora da
vida,
uso do traje branco.
Artigo XI
Fica decretado, por
definição,
que o homem é um
animal que ama
e que por isso é
belo,
muito mais belo que a
estrela da manhã.
Artigo XII
Decreta-se que nada
será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com
os rinocerontes
e caminhar pelas
tardes
com uma imensa
begônia na lapela.
Parágrafo único:
Só uma coisa fica
proibida:
amar sem amor.
Artigo XIII
Fica decretado que o
dinheiro
não poderá nunca mais
comprar
o sol das manhãs
vindouras.
Expulso do grande baú
do medo,
o dinheiro se transformará
em uma espada fraternal
para defender o
direito de cantar
e a festa do dia que
chegou.
Artigo Final
Fica proibido o uso
da palavra liberdade,
a qual será suprimida
dos dicionários
e do pântano enganoso
das bocas.
A partir deste
instante
a liberdade será algo
vivo e transparente
como um fogo ou um
rio,
e a sua morada será
sempre
o coração do homem.
Santiago do Chile, abril de 1964.
Velhos à Espera
(Freddie Combs:
pintor norte-americano)
Referência:
MELLO, Thiago. Os estatutos do homem. In:
PINTO, José Nêumanne (Seleção). Os cem
melhores poetas brasileiros do século. São Paulo, SP: Geração Editorial,
2001. p. 273-276.
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