Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 14 de maio de 2016

Waly Salomão - Estética da Recepção

Com um linguajar todo próprio – seria um consectário do modo de falar baiano?! (rs) –, Salomão espreita neste poema, nomeado com título a dizer respeito a um construto em voga na Teoria Literária – pautado na hermenêutica de Gadamer e na filosofia de Heidegger –, o alvo principal de qualquer texto, qual seja, o próprio leitor.

Nele se vê uma escrita provocante e estrídula, a tirar esse mesmo leitor da sua zona de conforto, na medida em que se propõe a refletir sobre a totalidade da poesia, mesmo que esta, em seus meandros, por vezes se torne, a nosso ver, algo obscura.

J.A.R. – H.C.

Apreciação da Obra do Autor
por Manuel da Costa Pinto
(PINTO, 2006, p. 336-337)

“Eu não nasci para ser clássico de nascença [...] / Sou todo ao convulsivo.” Esses versos sintetizam o programa estético de Waly Salomão, um dos principais expoentes do tropicalismo, ao lado de Torquato Neto (que se suicidou em 1972 e com quem editou a revista Navilouca), Duda Machado e Antonio Risério, além de nomes mais conhecidos como compositores de música popular, como Gilberto Gil e Caetano Veloso.
Aliás, vale observar que Salomão sempre manteve uma relação estreita com a música, produzindo shows de Gal Costa e escrevendo letras (a mais conhecida delas é “Vapor Barato”, parceria com Jards Macalé). Como poeta da palavra impressa, ele criou uma escrita hiperbólica, solar, alimentada tanto pelo messianismo de Antônio Conselheiro (o líder da revolta de Canudos) e pelo barroco baiano do poeta Gregório de Matos e do orador jesuíta Antônio Vieira, quanto pela atitude contracultural, anárquica (uma forma hedonista, vital, de “suportar a vaziez”). O resultado é uma “geleia geral” (segundo a expressão de Torquato) que certamente o aparta do rigor construtivo ou da economia retórica que caracterizam a poesia modernista. Mas isso não impede que, num poema do livro póstumo Pescados Vivos, Waly Salomão revele sua consciência de nossa tradição literária, propondo uma leitura pessoal de Carlos Drummond de Andrade que rejeita os “assaltos dos exércitos da hermenêutica” (as apropriações da poesia por uma crítica literária sisuda) e enxerga no escritor itabirano “uma aventura adâmica, / um convite renovado ao espanto e à surpresa”.
Principais Obras: Algaravia – Câmara de Ecos (Editora 34, 1996), Lábia (Rocco, 1998), Tarifa de Embarque (Rocco, 2000), Pescados Vivos (Rocco, 2004).

Waly Salomão
(1943-2003)

Estética da Recepção

Turris eburnea.
Que o poeta brutalista é o espeto do cão.
Seu lar esburacado na lapa abrupta. Acolá ele vira onça
e cutuca o mundo com vara curta.
O mundo de dura crosta é de natural mudo,
e o poeta é o anjo da guarda
do santo do pau oco.
Abre os poros, pipoca as pálpebras, e, com a pá virada,
mija em leque no cururu malocado na cruz da encruzilhada.
Cachaças para capotar e enrascar-se em palpos de aranha.

Ó mundo de surdas víboras sem papas nas línguas cindidas,
serpes, serpentes,
já que o poeta mimético se lambuza de mel silvestre,
carrega antenas de gafanhoto mas não posa de profeta:
“Ó voz clamando no deserto.”
Pois eu, pitonisa, falo que ele, poeta,
não permite que sua pele crie calo
dado que o mundo é de áspera epiderme
como a casca rugosa de um fero rinoceronte
de um extrapoemático elefante
posto que nas entranhas do poema os estofos do elefante
são sedas
delicadezas
carências de humano paquiderme.

É o mundo ocluso e mouco amasiado ao poeta gris e oco.
Caatinga de grotão seco atada à gamela de pirão pouco.
Suportar a vaziez.
Suportar a vaziez como um faquir que come sua própria fome
e, sem embargo, destituído quiçá do usucapião e usufruto do tino
com a debandada de qualquer noção de impresso prazo de jejum.

Suportar a vaziez.
Suportar a vaziez.
Suportar a vaziez.
Sem fanfarras, o vazio não carece delas.

De: “Tarifa de Embarque”

Cavalo, pito e flor vermelha
(Joan Miró: artista espanhol)

Referência:

SALOMÃO, Waly. Estética da recepção. In: PINTO, Manuel da Costa (Seleção e organização). Antologia comentada da poesia brasileira do século 21. São Paulo, SP: Publifolha, 2006. p. 332-333.

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