Com um linguajar todo próprio – seria um consectário do modo de falar
baiano?! (rs) –, Salomão espreita neste poema, nomeado com título a dizer
respeito a um construto em voga na Teoria Literária – pautado na hermenêutica
de Gadamer e na filosofia de Heidegger –, o alvo principal de qualquer texto,
qual seja, o próprio leitor.
Nele se vê uma escrita provocante e estrídula, a tirar esse mesmo leitor
da sua zona de conforto, na medida em que se propõe a refletir sobre a
totalidade da poesia, mesmo que esta, em seus meandros, por vezes se torne, a nosso
ver, algo obscura.
J.A.R. – H.C.
Apreciação da Obra do Autor
por Manuel da Costa Pinto
(PINTO, 2006, p.
336-337)
“Eu não nasci para ser clássico de
nascença [...] / Sou todo ao convulsivo.” Esses versos sintetizam o programa
estético de Waly Salomão, um dos principais expoentes do tropicalismo, ao lado
de Torquato Neto (que se suicidou em 1972 e com quem editou a revista Navilouca), Duda Machado e Antonio Risério,
além de nomes mais conhecidos como compositores de música popular, como
Gilberto Gil e Caetano Veloso.
Aliás, vale observar que Salomão sempre
manteve uma relação estreita com a música, produzindo shows de Gal Costa e
escrevendo letras (a mais conhecida delas é “Vapor Barato”, parceria com Jards
Macalé). Como poeta da palavra impressa, ele criou uma escrita hiperbólica,
solar, alimentada tanto pelo messianismo de Antônio Conselheiro (o líder da
revolta de Canudos) e pelo barroco baiano do poeta Gregório de Matos e do
orador jesuíta Antônio Vieira, quanto pela atitude contracultural, anárquica
(uma forma hedonista, vital, de “suportar a vaziez”). O resultado é uma “geleia
geral” (segundo a expressão de Torquato) que certamente o aparta do rigor
construtivo ou da economia retórica que caracterizam a poesia modernista. Mas
isso não impede que, num poema do livro póstumo Pescados Vivos, Waly Salomão revele sua consciência de nossa
tradição literária, propondo uma leitura pessoal de Carlos Drummond de Andrade
que rejeita os “assaltos dos exércitos da hermenêutica” (as apropriações da
poesia por uma crítica literária sisuda) e enxerga no escritor itabirano “uma
aventura adâmica, / um convite renovado ao espanto e à surpresa”.
Principais Obras: Algaravia – Câmara de Ecos (Editora 34, 1996), Lábia (Rocco, 1998), Tarifa
de Embarque (Rocco, 2000), Pescados
Vivos (Rocco, 2004).
Waly Salomão
(1943-2003)
Estética da Recepção
Turris eburnea.
Que o poeta
brutalista é o espeto do cão.
Seu lar esburacado na
lapa abrupta. Acolá ele vira onça
e cutuca o mundo com
vara curta.
O mundo de dura
crosta é de natural mudo,
e o poeta é o anjo da
guarda
do santo do pau oco.
Abre os poros, pipoca
as pálpebras, e, com a pá virada,
mija em leque no
cururu malocado na cruz da encruzilhada.
Cachaças para capotar
e enrascar-se em palpos de aranha.
Ó mundo de surdas
víboras sem papas nas línguas cindidas,
serpes, serpentes,
já que o poeta
mimético se lambuza de mel silvestre,
carrega antenas de
gafanhoto mas não posa de profeta:
“Ó voz clamando no deserto.”
Pois eu, pitonisa,
falo que ele, poeta,
não permite que sua
pele crie calo
dado que o mundo é de
áspera epiderme
como a casca rugosa
de um fero rinoceronte
de um extrapoemático
elefante
posto que nas
entranhas do poema os estofos do elefante
são sedas
delicadezas
carências de humano
paquiderme.
É o mundo ocluso e
mouco amasiado ao poeta gris e oco.
Caatinga de grotão
seco atada à gamela de pirão pouco.
Suportar a vaziez.
Suportar a vaziez
como um faquir que come sua própria fome
e, sem embargo,
destituído quiçá do usucapião e usufruto do tino
com a debandada de
qualquer noção de impresso prazo de jejum.
Suportar a vaziez.
Suportar a vaziez.
Suportar a vaziez.
Sem fanfarras, o
vazio não carece delas.
De: “Tarifa de Embarque”
Cavalo, pito e flor vermelha
(Joan Miró: artista
espanhol)
Referência:
SALOMÃO, Waly. Estética da recepção.
In: PINTO, Manuel da Costa (Seleção e organização). Antologia comentada da poesia brasileira do século 21. São Paulo,
SP: Publifolha, 2006. p. 332-333.
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