Com um título que, à primeira vista, parece conflitante – afinal,
lembranças dizem respeito ao passado, de forma que lembrança da morte só
poderia advir depois de sua ocorrência, o que levaria a algo como memórias
póstumas (rs) –, o poeta, no poema a seguir, aflora à sua mente o momento
futuro de seu passamento.
Eivado de tão lúgubres ideias, o poema ainda assim expressa suficiente beleza,
ainda que torturada pelas sendas do “mal do século”. O poeta abraçou a morte
prematuramente, de tanto nela pensar – e, sob a proteção das sombras do vale e
noites da montanha, ouviu-se o canto elegíaco sobre o seu corpo inerte...
J.A.R. – H.C.
Álvares de Azevedo
(1831-1852)
Lembrança de morrer
No more! o
never more!
Shelley
Quando em meu peito
rebentar-se a fibra,
Que o espírito enlaça
à dor vivente,
Não derramem por mim
nem uma lágrima
Em pálpebra demente.
Em pálpebra demente.
E nem desfolhem na
matéria impura
A flor do vale que
adormece ao vento:
Não quero que uma
nota de alegria
Se cale por meu triste
passamento.
Eu deixo a vida como
deixa o tédio
Do deserto o poento
caminheiro
– Como as horas de um
longo pesadelo
Que se desfaz ao
dobre de um sineiro;
Como o desterro de
minh’alma errante,
Onde fogo insensato a
consumia:
Só levo uma saudade –
é desses tempos
Que amorosa ilusão
embelecia.
Só levo uma saudade –
é dessas sombras
Que eu sentia velar
nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe!
pobre coitada
Que por minha
tristeza te definhas!
De meu pai... de meus
únicos amigos,
Poucos, – bem poucos –
e que não zombavam
Quando, em noites de
febre endoidecido,
Minhas pálidas
crenças duvidavam.
Se uma lágrima as
pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos
seios treme ainda,
É pela virgem que
sonhei... que nunca
Aos lábios me
encostou a face linda!
Só tu à mocidade
sonhadora
Do pálido poeta deste
flores...
Se viveu foi por ti!
e de esperança
De na vida gozar de
teus amores.
Beijarei a verdade
santa e nua,
Verei cristalizar-se
o sonho amigo...
Ó minha virgem dos
errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou
amar contigo!
Descansem o meu leito
solitário
Na floresta dos
homens esquecida,
À sombra de uma cruz,
e escrevam nela:
– Foi poeta – sonhou
– e amou na vida. –
Sombras do vale,
noites da montanha,
Que minh’alma cantou
e amava tanto,
Protegei o meu corpo
abandonado,
E no silêncio
derramai-lhe canto!
Mas quando preludia a
ave d’aurora
E quando à meia noite
o céu repousa,
Arvoredos do bosque,
abri os ramos...
Deixai a lua
prantear-me a lousa!
Em: “Lira dos vinte anos”
Pássaros ao Nascer do Dia
(Joan Miró: artista espanhol)
Referência:
AZEVEDO, Álvares de. Lembrança de morrer.
In: __________. Os melhores poemas de
Álvares de Azevedo. Seleção de Antonio Candido de Mello e Souza. São Paulo,
SP: Global, 1985. p. 44-46. (“Os Melhores Poemas”; v. 13)
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