Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 24 de maio de 2016

Álvares de Azevedo - Lembrança de morrer

Com um título que, à primeira vista, parece conflitante – afinal, lembranças dizem respeito ao passado, de forma que lembrança da morte só poderia advir depois de sua ocorrência, o que levaria a algo como memórias póstumas (rs) –, o poeta, no poema a seguir, aflora à sua mente o momento futuro de seu passamento.

Eivado de tão lúgubres ideias, o poema ainda assim expressa suficiente beleza, ainda que torturada pelas sendas do “mal do século”. O poeta abraçou a morte prematuramente, de tanto nela pensar – e, sob a proteção das sombras do vale e noites da montanha, ouviu-se o canto elegíaco sobre o seu corpo inerte...

J.A.R. – H.C.

Álvares de Azevedo
(1831-1852)

Lembrança de morrer

No more! o never more!
Shelley

Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.

Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto o poento caminheiro
– Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como o desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade – é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade – é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe! pobre coitada
Que por minha tristeza te definhas!

De meu pai... de meus únicos amigos,
Poucos, – bem poucos – e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoidecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!

Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo...
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
– Foi poeta – sonhou – e amou na vida. –

Sombras do vale, noites da montanha,
Que minh’alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!

Mas quando preludia a ave d’aurora
E quando à meia noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua prantear-me a lousa!

Em: “Lira dos vinte anos”

Pássaros ao Nascer do Dia
(Joan Miró: artista espanhol)

Referência:

AZEVEDO, Álvares de. Lembrança de morrer. In: __________. Os melhores poemas de Álvares de Azevedo. Seleção de Antonio Candido de Mello e Souza. São Paulo, SP: Global, 1985. p. 44-46. (“Os Melhores Poemas”; v. 13)

Nenhum comentário:

Postar um comentário