Cattaneo (1941-1996), poeta e escritor, foi tradutor para o italiano de
obras de autores portugueses, como Eugénio de Andrade e Jorge de Sena. Com este
último trocou inúmeras correspondências entre, sobretudo, 1969 e 1978.
Em sentido contrário, a versão ao português do poema abaixo, de autoria
do italiano, é de ninguém menos do que o próprio Jorge de Sena: por meio dela
se pode ter contato com uma escrita estribada no lúbrico e no carnal, a
recorrer à imaginação e às representações simbólicas para melhor expressar os
seus embates intestinos.
J.A.R. – H.C.
Narciso
(Caravaggio: pintor
italiano)
Meditação de Narciso
que persigo é beleza?
é vaidade
de adormentadas aves
antes do escapar
íntimo por pegos onde
o olhar se cala
é virgindade de
folhas trespassadas por agulhas
e pelos temporais
suspensos nos recessos do dia?
é um bosque só em que
penetro avanço em símbolos
erecto me revelo como
um rubro que engana
das fissuras abertas
faço brotar gemas
e a candura opaca jaz
em solidão
um eco me absorve e uma
ilusão renasço
multímodo nos ritos
do morrer – e vi
em cada meu fragmento
que lava se adensa
cresta queima torna
estéril a secreta estância
de amar e conhecer
onde Narciso se ama
qual a injúria?
busquei signos e cifras
de perfeição em
outros corpos e no voo
a Narciso encontrei e
ao eco de Narciso
a fantasia me dilata
e me reduz
a uma carne só –
prisão ou liberdade?
sei e não sei que
importa? uma onda me entrega
ao proibido amplexo o
meu rosto
o meu nome o meu sexo
– além da morte me amo
Vênus se diverte com o amor e a música
(Ticiano Vecellio: pintor
italiano)
Referência:
CATTANEO, Carlo Vittorio. Meditação de
Narciso. Tradução de Jorge de Sena. In: SENA, Jorge de (Antologia, tradução,
prefácio e notas). Poesia do século XX:
de Thomas Hardy a C. V. Cattaneo. Porto, PT: Editorial Inova, 1978. p. 486-487.
(Colecção “As Mãos e os Frutos”; v. 14).
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