Baudelaire, no poema em prosa abaixo, nos reconta a história de um
missionário na China que, para saber das horas por intermédio de um garoto, viu-se,
de repente, surpreendido ao perceber que este recorrera ao branco dos olhos de
um gato farto, para lhe afirmar que ainda não passara do meio-dia.
Contempla então o narrador os olhos de seu belo felino – sendo ambíguo
se se trata de um gato propriamente dito ou de sua amante humana –, para de lá
capturar todos as representações da eternidade!
J.A.R. – H.C.
Charles Baudelaire
(1821-1867)
XVI
L’Horloge
Les Chinois voient l’heure dans l’oeil des chats.
Un jour un missionnaire, se promenant dans la banlieue de Nankin, s’aperçut
qu’il avait oublié sa montre, et demanda à un petit garçon quelle heure il
était.
Le gamin du céleste Empire hésita d’abord;
puis, se ravisant, il répondit: “Je vais vous le dire.” Peu d’instants après, il reparut, tenant dans ses
bras un fort gros chat, et le regardant, comme on dit, dans le blanc des yeux,
il affirma sans hésiter: “Il n’est pas encore tout à fait midi.” Ce qui était
vrai.
Pour moi, si je me penche vers la belle Féline, la si bien nommée, qui
est à la fois l’honneur de son sexe, l’orgueil de mon coeur et le parfum de mon
esprit, que ce soit la nuit, que ce soit le jour, dans la pleine lumière ou
dans l’ombre opaque, au fond de ses yeux adorables je vois toujours l’heure
distinctement, toujours la même, une heure vaste, solennelle, grande comme l’espace,
sans divisions de minutes ni de secondes, – une heure immobile qui n’est pas
marquée sur les horloges, et cependant légère comme un soupir, rapide comme un
coup d’oeil.
Et si quelque importun venait me
déranger pendant que mon regard repose sur ce délicieux cadran, si quelque
Génie malhonnête et intolérant, quelque Démon du contretemps venait me dire: “Que
regardes-tu là avec tant de soin? Que cherches-tu dans les yeux de cet être? Y
vois-tu l’heure? mortel prodigue et fainéant?” je répondrais sans hésiter: “Oui,
je vois l’heure; il est l’Eternité!”
N’est-ce pas, madame,
que voici un madrigal vraiment méritoire, et aussi emphatique que vous-même? En
vérité, j’ai eu tant de plaisir à broder cette prétentieuse galanterie, que je
ne vous demanderai rien en échange.
En: “Petits
Poèmes en Prose” (1862)
O Relógio
(Juan Gris: pintor espanhol)
XVI
O Relógio
Os chineses veem as horas nos olhos dos
gatos.
Um dia, um missionário, passeando nos
arredores de Nanquim, percebeu que tinha esquecido o relógio e perguntou a um
garotinho que horas eram.
A princípio, o moleque do celeste
Império ficou indeciso; depois, mudando de ideia, respondeu: “Já vou lhe
dizer”, e foi embora. Passados alguns instantes, ele reapareceu, segurando nas
mãos um gato bem gordo, e, fitando-lhe, como se diz, o branco do olho, afirmou
sem hesitar: “Ainda não passou do meio-dia”. O que era verdade.
Quanto a mim, se me chego à bela Felina
– que nome justo! – que é, de uma só vez, a honra do seu sexo, o orgulho do meu
coração e o perfume do meu espírito, quer seja de noite, quer seja de dia, em
plena luz ou numa escuridão opaca, no fundo dos seus adoráveis olhos eu sempre
vejo distintamente o tempo, sempre o mesmo, um tempo vasto, solene, grande como
o espaço, não dividido em minutos nem em segundos – um tempo imóvel que não é
marcado pelos relógios e, todavia, leve como um suspiro, rápido como uma
olhada.
E se algum importuno me viesse
incomodar, enquanto meu olhar repousasse sobre esse mostrador delicioso, se um
Gênio desonesto e intolerante, um Demônio do contratempo viesse dizer-me: “O
que é que estás olhando com tanta atenção? O que estás procurando nos olhos
desse ser? Por acaso, vês lá as horas, mortal pródigo e vadio?” – responderia
sem hesitar: “Sim, lá vejo as horas: é a Eternidade!”
Não é, Senhora, um
madrigal realmente meritório e tão enfático quanto você? Na verdade, tive tanto
prazer em bordar esse pretensioso galanteio que não lhe pedirei nada em troca.
Em: “Pequenos Poemas em Prosa” (1862)
Referências:
Em Francês
BAUDELAIRE, Charles. L’horloge. In: NOVARINO-POTHIER, Albine (Édition et choix). Le chat en 60 poèmes. Paris: Omnibus,
2013. p. 47.
Em Português
BAUDELAIRE, Charles. XVI - O Relógio.
In: __________. O esplim de Paris:
pequenos poemas em prosa e outros escritos. Tradução de Oleg Almeida. São
Paulo, SP: Martin Claret, 2010. p. 50-51. (Clássicos de Bolso: literatura
universal; n. 4)
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