Jorge Luis Borges – um autor que nos espanta pelo largo espectro de sua
erudição –, em prosa suficientemente transparente, assim se manifesta sobre “A
Divina Comédia”, de Alighieri, colocando-a no ápice de todas as literaturas:
“Uma vez escrevi um
artigo intitulado ‘O enigma de Ulisses’. Publiquei-o, depois o perdi e agora
vou procurar reconstruí-lo. Acho que é o episódio [Canto XXVI] mais enigmático
da Comédia, talvez o mais intenso, só que é muito difícil, tratando-se de cumes,
saber qual é o mais alto deles, e a Comédia é um conjunto deles.
Se escolhi a Comédia
para esta primeira conferência é porque sou um homem de letras e acredito que o
ápice da literatura e das literaturas é a Comédia. Isso não significa que
concorde com sua teologia nem que esteja de acordo com suas mitologias. Temos a
mitologia cristã e a pagã embaralhadas. Não se trata disso. Trata-se de que
nenhum livro me proporcionou emoções estéticas tão intensas. E eu sou um leitor
hedonista, repito; nos livros, procuro emoção.
A Comédia é um livro que todos devem
ler. Deixar de fazê-lo é privar-se do melhor presente que a literatura pode nos
oferecer, é entregar-se a um estranho ascetismo. Por que se negar a felicidade
de ler a Comédia? Inclusive, não se trata de uma literatura difícil. Difícil é
o que está por trás da leitura: as opiniões, as discussões; mas o livro em si é
um livro cristalino” (BORGES, 2011, p. 98).
Decerto, “A Divina Comédia” extrai os seus méritos do poder de
representação das imagens criadas pelo mestre italiano, sobretudo em meio aos
seus passeios em companhia de Virgílio, pelos cantões esteticamente bem
delimitados do “Inferno”.
Aproveitando então tal oportunidade, de modo a fazer brunir este
bloguinho, transcrevemos, abaixo, numa tradução que não é manifestamente
poética, senão quase literal, um excerto do Canto I, do “Inferno”, no qual:
“Dante se perde, à noite, na selva
escura e, pela manhã, chega aos pés de uma colina iluminada pelo sol. Três
feras barram-lhe o caminho e o fazem retroceder para a selva. Aparece-lhe o
poeta Virgílio que o convida a seguir o itinerário espiritual da salvação
através dos três reinos de além-túmulo” (ZAMPOGNARO, 2011, p. 45).
J.A.R. – H.C.
Dante Alighieri
(1265-1321)
Pintura do italiano
Sandro Botticelli
Inferno
Canto I
(Estratto)
Nel mezzo del cammin
di nostra vita
mi ritrovai per una
selva oscura,
ché la diritta via
era smarrita.
Ahi quanto a dir qual
era è cosa dura
esta selva selvaggia
e aspra e forte
che nel pensier
rinova la paura!
Tant’è amara che poco
è più morte;
ma per trattar del ben ch’i’ vi trovai
dirò de l’altre cose
ch’i’ v’ho scorte.
Io non so ben ridir com’i’ v’intrai,
tant’era pien di
sonno a quel punto
che la verace via
abbandonai...
Ilustração: Canto I (“Inferno”)
(Gustave Doré:
artista francês)
Inferno
Canto I
(Excerto)
No meio do caminho de
nossa vida,
encontrei-me numa
selva escura,
de tal modo que a via
certa desaparecera.
Ah! Descrever como
realmente era difícil
essa selva selvagem,
áspera e densa
que no pensamento
renova o medo!
Tanto é terrífica,
que pouco mais é morte,
mas para descrever a
boa ajuda que ali encontrei
falarei sobre outras
coisas que ali divisei.
Não sei na verdade
dizer como nela entrei,
pois estava de tal
modo dominado pelo sono nesse momento
que a verdadeira via
abandonei.
Referências:
ALIGHIERI, Dante. Inferno: Canto I (Estratto)
/ Inferno: Canto I (Excerto). Tradução de Carlos E. Zampognaro. In: ZAMPOGNARO,
Carlos E. Dante Alighieri: o poeta
filósofo. São Paulo, SP: Lafonte, 2011. Em Italiano: p. 64; em português: p.
64-65. (‘Filosofia Comentada’)
BORGES, Jorge Luis. A divina comédia.
In: __________. Borges oral & Sete noites. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
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