O poeta luso-brasileiro Domingos Carvalho da Silva extrai das eras da
Terra o motivo para um elegante poema sobre o poder de transformação das
coisas. Não temos a certeza se no período terciário da era cenozoica já havia
pombos, mas pouco importa. Tudo são motivos para arranjos verbais lustrosos.
E àquela altura, Domingos argumenta, Deus sequer existia. Bem! Se
imaginarmos que Deus foi uma criação humana – pergunte-se ao Dawkins! (rs) –, há
de se ter como verdade que a ideia ainda não existia durante o muito tempo em
que perdurou o terciário: uns 60 a 70 milhões de anos.
J.A.R. – H.C.
Domingos Carvalho da Silva
(1915-2003)
Poema Terciário
a João Cabral de Melo Neto
Cavalos já foram
pombos
de asas de nuvem. Um
rio
banhava o rosto da
aurora.
Cavalos já foram
pombos
na madrugada do
outrora.
Onde há florestas
havia
golfos oblongos por
onde
tranquilos peixes
corriam.
Uma lua alvissareira
passava a noite. E
deixava
reticências de cometa
vagalumeando na relva
das margens, até à
aurora
da Idade de Ouro do
outrora,
quando cavalos alados
tinham estrelas nas
crinas
alvas como asas de
pombo.
O Verbo não existia.
Deus era incriado
ainda.
Só as esponjas
dormitavam
trespassadas por
espadas
de água metálica,
impoluta.
E as gaivotas
planejavam
etapas
estratosféricas
próximo as praias
ibéricas.
E as montanhas
desabavam
em estertores
terciários,
em agonias de
estrondo,
nas manhãs de sol
atlântico,
quando cortavam as
nuvens
– alvos garbosos
equinos –
esquadrões marciais
de pombos.
Teu cabelo era ainda
musgo.
Teus olhos o corpo
frio
de uma ostra
semiviva.
E tua alma
sempre-viva
Sobrenadava o oceano
qual uma estrela
perdida.
Teu coração era
concha
fechada e sem
pulsação.
E teu gesto – que é
teu riso –
era um mineral
estático
ainda não escavado
pelo mar duro e
fleumático.
Cavalos já foram
pombos.
E a prata que anda na
garra
dos felinos, reluzia
em vibrações uterinas
no ventre da terra
fria,
quando o dia era só
aurora
e Deus sequer
existia,
na madrugada do
outrora.
Três cavalos se alimentando
com dois pombos ornamentais
(John Frederick Herring Senior: pintor inglês)
Referência:
CARAVALHO DA SILVA, Domingos. Poema
Terciário. PINTO, José Nêumanne (Sel.). Os
Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século. Ilustrações de Tide Hellmeister.
2. ed. São Paulo, SP: Geração Editorial, 2004. p. 136-138.
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