Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 6 de setembro de 2015

Domingos Carvalho da Silva - Poema Terciário

O poeta luso-brasileiro Domingos Carvalho da Silva extrai das eras da Terra o motivo para um elegante poema sobre o poder de transformação das coisas. Não temos a certeza se no período terciário da era cenozoica já havia pombos, mas pouco importa. Tudo são motivos para arranjos verbais lustrosos.

E àquela altura, Domingos argumenta, Deus sequer existia. Bem! Se imaginarmos que Deus foi uma criação humana – pergunte-se ao Dawkins! (rs) –, há de se ter como verdade que a ideia ainda não existia durante o muito tempo em que perdurou o terciário: uns 60 a 70 milhões de anos.

J.A.R. – H.C.

Domingos Carvalho da Silva
(1915-2003)

Poema Terciário

a João Cabral de Melo Neto

Cavalos já foram pombos
de asas de nuvem. Um rio
banhava o rosto da aurora.
Cavalos já foram pombos
na madrugada do outrora.
Onde há florestas havia
golfos oblongos por onde
tranquilos peixes corriam.
Uma lua alvissareira
passava a noite. E deixava
reticências de cometa
vagalumeando na relva
das margens, até à aurora
da Idade de Ouro do outrora,
quando cavalos alados
tinham estrelas nas crinas
alvas como asas de pombo.
O Verbo não existia.
Deus era incriado ainda.
Só as esponjas dormitavam
trespassadas por espadas
de água metálica, impoluta.
E as gaivotas planejavam
etapas estratosféricas
próximo as praias ibéricas.
E as montanhas desabavam
em estertores terciários,
em agonias de estrondo,
nas manhãs de sol atlântico,
quando cortavam as nuvens
– alvos garbosos equinos –
esquadrões marciais de pombos.
Teu cabelo era ainda musgo.
Teus olhos o corpo frio
de uma ostra semiviva.
E tua alma sempre-viva
Sobrenadava o oceano
qual uma estrela perdida.
Teu coração era concha
fechada e sem pulsação.
E teu gesto – que é teu riso –
era um mineral estático
ainda não escavado
pelo mar duro e fleumático.
Cavalos já foram pombos.
E a prata que anda na garra
dos felinos, reluzia
em vibrações uterinas
no ventre da terra fria,
quando o dia era só aurora
e Deus sequer existia,
na madrugada do outrora.

Três cavalos se alimentando
com dois pombos ornamentais
(John Frederick Herring Senior: pintor inglês)

Referência:

CARAVALHO DA SILVA, Domingos. Poema Terciário. PINTO, José Nêumanne (Sel.). Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século. Ilustrações de Tide Hellmeister. 2. ed. São Paulo, SP: Geração Editorial, 2004. p. 136-138.

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