Um grande poeta – o pernambucano João Cabral de Melo Neto – a dedicar um
poema a outro grande poeta – o mineiro Carlos Drummond de Andrade. Dois
luminares da criação poética brasileira do século XX.
Cabral não vislumbra guaritas contra o amor – que dilacera –, o tédio –
das coisas que se repetem indefinidamente –, o tempo – que tudo desgasta –, o
mundo – interpretado de diferentes modos nas páginas dos jornais –, o poema
enfim – este sim, criação espontânea, que irrompe como uma flor em qualquer
terreno, “mesmo num canteiro”.
O poema... soberano e instintivo, a fluir em livre associação diretamente
da mente do poeta. O poema... fruto da labuta de seu criador com as palavras,
comedido, escandido, metrificado, mensurado, planejado como um filho que vem ao
mundo com um propósito específico. Mas todos eles, poemas... porque a beleza
não se expressa de maneira unívoca!
J.A.R. – H.C.
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
A Carlos Drummond de Andrade
Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões
onde tudo é surpresa
como uma flor mesmo
num canteiro.
Não há guarda-chuva
contra o amor
que mastiga e cospe
como qualquer boca,
que tritura como um
desastre.
Não há guarda-chuva
contra o tédio:
o tédio das quatro
paredes, das quatro
estações, dos quatro
pontos cardeais.
Não há guarda-chuva
contra o mundo
cada dia devorado nos
jornais
sob as espécies de
papel e tinta.
Não há guarda-chuva
contra o tempo,
rio fluindo sob a
casa, correnteza
carregando os dias,
os cabelos.
De: “O Engenheiro” (1942-1945)
O Jardim das Flores
(Émile Vernon: pintor
francês)
Referência:
MELO NETO, João Cabral. A Carlos
Drummond de Andrade. In:__________. Antologia
poética. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora; Sabiá, 1973.
p. 267.
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