Mello redigiu estes
versos no exílio, em Santiago (CL), em meados de 1973, mais ou menos no auge da
ditadura militar no país, e com isso, deveras, nosso olhar sobre o poema em
apreço inclina-se a cogitar que a violência que se expressa em algumas de suas
linhas diga respeito à arbitrariedade e à prepotência, então em curso pelo
regime militar pátrio.
Mas por trás do temor
do falante pelo que possa advir, há também certo relevo na esperança de dias
melhores, haja vista que “ainda não é o fim”: sonhos mantêm a chama a arder no
coração, permitindo-lhe avançar “com o que sobrou”, ainda que vagarosamente,
palmilhando o “chão ferido” com “pernas bambas”, para dar respostas aos
insistentes reclamos da vida.
J.A.R. – H.C.
Thiago de Mello
(1926-2022)
Ainda não é o fim
Escondo o medo e
avanço. Devagar.
Ainda não é o fim. É
bom andar,
mesmo de pernas
bambas. Entre os álamos,
no vento anoitecido,
ouço de novo
(com os mesmos
ouvidos que escutaram
“Mata aqui mesmo?”)
um riso de menina.
Estou quase canção,
não vou morrer
agora, de mim mesmo,
mal livrado
de recente e total
morte de fogo.
A vida me reclama: a
moça nua
me chama da janela, e
nunca mais
me lembrarei sequer
dos olhos dela.
Posso seguir andando
como um homem
entre rosas e pombos
e cabelos
que em prazo certo me
devolverão
ao sonho que me
queima o coração.
Muito perdi, mas amo
o que sobrou.
Alguma dor, pungindo
cristalina,
alguma estrela, um
rosto de campina.
Com o que sobrou,
avanço, devagar.
Se avançar é saber,
lâmina ardendo
na flor do cerebelo,
porque foi
que a alegria, a
alegria começando
a se abrir, de
repente teve fim.
Mas que avançar no
chão ferido seja
também saber o que
fazer de mim.
Santiago,
fim de setembro de
1973.
Em: “Poesia
comprometida com
a minha e a tua vida”
(1975)
Opressão
(Goss Ristic: pintor
sul-africano)
Referência:
MELLO, Thiago de. Ainda não é o fim. In: __________. Poemas preferidos pelo autor e seus leitores: edição comemorativa dos 75 anos do autor. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 2006. p. 156-157.
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