Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Mario Benedetti - Ode à Mordaça

A relembrar os tempos políticos sombrios pelos quais passou o Uruguai na virada dos anos 60 aos 70 do século passado, Benedetti denuncia, seguramente, a censura à livre circulação de ideias no período, sublinhando que não se conquistam corações e mentes com tal procedimento, e o mais provável é que haja forte resistência anticonformista.

 

À violência da censura geralmente sucede a desinformação, o ultraje, a repressão, a tortura e, vezes sem conta, a morte – cenário que se concretizou em muitos dos países do cone sul, o Brasil inclusive, torrão onde há poucos anos um inominável infame ousou fazer troça daqueles que perderam a vida durante os trágicos anos da ditadura militar (1964-1985).

 

J.A.R. – H.C.

 

Mario Benedetti

(1920-2009)

 

Oda a la Mordaza

 

No creo en vos

mordaza

pero voy a decirte

por qué no creo

ya ves

ahora no digo

no hoy

ni ay

 

y sin embargo

igual destapo el verbo

respiro el grito

y armo la blasfêmia

 

pienso

luego insisto

 

hago inventario

de tu alegre pálpito de la miseria

de tu crueldad sin muchas ilusiones

de tu ira lustrada

de tu miedo

porque mordaza

vos

sos muchísimo más que un trapo sucio

sos la mano tembleque que te ayuda

sos el dueño flamante de esa mano

y hasta el dueño canalla de tu dueño

 

porque mordaza

sos muchísimo más que un trapo sucio

con gusto a boca libre y a puteada

sos la ley malviviente del sistema

sos la flor bienmuriente de la infamia

 

pienso

luego insisto

 

a tu custodia quedan mis labios apretados

quedan mis incisivos

colmillos

y molares

queda mi lengua

queda mi discurso

pero no queda en cambio mi garganta

 

en mi garganta empiezo

por lo pronto

a ser libre

a veces trago la saliva amarga

pero no trago mi rencor sagrado

 

mordaza bárbara

mordaza ingenua

crees que no voy a hablar

pero sí hablo

solamente con ser

y con estar

 

pienso

luego insisto

 

qué me importa callar

si hablamos todos

por todas partes las paredes

y por todos los signos

qué me importa callar

si ya sabés

oscura

qué me importa callar

si ya sabés

mordaza

lo que voy a decirte

porqueira

 

En: “Letras de Emergencia” (1969-1973)

 

Amordaçado e amarrado

(Gravura de autoria desconhecida)

 

Ode à Mordaça

 

Não creio em você

mordaça

mas vou dizer

por que não creio

como você vê

agora não digo

nem hoje

nem ai

 

e no entanto

igual solto o verbo

respiro o grito

e armo a blasfêmia

 

penso

logo insisto

 

faço inventário

do seu alegre palpitar da miséria

da sua crueldade sem muitas ilusões

da sua ira lustrada

do seu medo

porque mordaça

você

é muitíssimo mais que um pano sujo

é a mão trêmula que a ajuda

é o dono flagrante desta mão

e até o dono canalha do seu dono

 

porque mordaça

você é muitíssimo mais que um pano sujo

com gosto de boca livre e palavrão

é a lei malvivente do sistema

é a flor bem-morrente da infâmia

 

penso

logo insisto

 

a seus cuidados ficam meus lábios apertados

ficam meus incisivos

caninos

e molares

fica minha língua

fica meu discurso

mas não fica porém minha garganta

 

na minha garganta começo

desde logo

a ser livre

às vezes engulo a saliva amarga

mas não engulo meu rancor sagrado

 

mordaça bárbara

mordaça ingênua

você acredita que não vou falar

porém sim falo

somente com ser

e com estar

 

penso

logo insisto

 

que me importa calar

se falamos todos

por todas as paredes

e por todos os signos

que me importa calar

se você já sabe

obscura

que me importa calar

se você já sabe

mordaça

o que vou te dizer

porcaria

 

Em: “Letras de Emergência” (1969-1973)

 

Referência:

 

BENDETTI, Mario. Oda a la mordaza / Ode à mordaça. Tradução de Julio Luís Gehlen. In: __________. Antologia poética. Edição bilíngue. Seleção, tradução e apresentação de Julio Luís Gehlen. Ilustrações de Luiz Trimano. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1988. Em espanhol: p. 190 e 192; em português: p. 191 e 193.

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