A relembrar os tempos
políticos sombrios pelos quais passou o Uruguai na virada dos anos 60 aos 70 do
século passado, Benedetti denuncia, seguramente, a censura à livre circulação
de ideias no período, sublinhando que não se conquistam corações e mentes com
tal procedimento, e o mais provável é que haja forte resistência anticonformista.
À violência da
censura geralmente sucede a desinformação, o ultraje, a repressão, a tortura e,
vezes sem conta, a morte – cenário que se concretizou em muitos dos países do
cone sul, o Brasil inclusive, torrão onde há poucos anos um inominável infame ousou
fazer troça daqueles que perderam a vida durante os trágicos anos da ditadura
militar (1964-1985).
J.A.R. – H.C.
Mario Benedetti
(1920-2009)
Oda a la Mordaza
No creo en vos
mordaza
pero voy a decirte
por qué no creo
ya ves
ahora no digo
no hoy
ni ay
y sin embargo
igual destapo el
verbo
respiro el grito
y armo la blasfêmia
pienso
luego insisto
hago inventario
de tu alegre pálpito
de la miseria
de tu crueldad sin
muchas ilusiones
de tu ira lustrada
de tu miedo
porque mordaza
vos
sos muchísimo más que
un trapo sucio
sos la mano tembleque
que te ayuda
sos el dueño flamante
de esa mano
y hasta el dueño
canalla de tu dueño
porque mordaza
sos muchísimo más que
un trapo sucio
con gusto a boca
libre y a puteada
sos la ley
malviviente del sistema
sos la flor bienmuriente
de la infamia
pienso
luego insisto
a tu custodia quedan
mis labios apretados
quedan mis incisivos
colmillos
y molares
queda mi lengua
queda mi discurso
pero no queda en
cambio mi garganta
en mi garganta
empiezo
por lo pronto
a ser libre
a veces trago la
saliva amarga
pero no trago mi
rencor sagrado
mordaza bárbara
mordaza ingenua
crees que no voy a
hablar
pero sí hablo
solamente con ser
y con estar
pienso
luego insisto
qué me importa callar
si hablamos todos
por todas partes las
paredes
y por todos los
signos
qué me importa callar
si ya sabés
oscura
qué me importa callar
si ya sabés
mordaza
lo que voy a decirte
porqueira
En: “Letras de Emergencia”
(1969-1973)
Amordaçado e amarrado
(Gravura de autoria
desconhecida)
Ode à Mordaça
Não creio em você
mordaça
mas vou dizer
por que não creio
como você vê
agora não digo
nem hoje
nem ai
e no entanto
igual solto o verbo
respiro o grito
e armo a blasfêmia
penso
logo insisto
faço inventário
do seu alegre
palpitar da miséria
da sua crueldade sem muitas
ilusões
da sua ira lustrada
do seu medo
porque mordaça
você
é muitíssimo mais que
um pano sujo
é a mão trêmula que a
ajuda
é o dono flagrante
desta mão
e até o dono canalha
do seu dono
porque mordaça
você é muitíssimo
mais que um pano sujo
com gosto de boca
livre e palavrão
é a lei malvivente do
sistema
é a flor bem-morrente
da infâmia
penso
logo insisto
a seus cuidados ficam
meus lábios apertados
ficam meus incisivos
caninos
e molares
fica minha língua
fica meu discurso
mas não fica porém
minha garganta
na minha garganta
começo
desde logo
a ser livre
às vezes engulo a
saliva amarga
mas não engulo meu
rancor sagrado
mordaça bárbara
mordaça ingênua
você acredita que não
vou falar
porém sim falo
somente com ser
e com estar
penso
logo insisto
que me importa calar
se falamos todos
por todas as paredes
e por todos os signos
que me importa calar
se você já sabe
obscura
que me importa calar
se você já sabe
mordaça
o que vou te dizer
porcaria
Em: “Letras de Emergência”
(1969-1973)
Referência:
BENDETTI, Mario. Oda
a la mordaza / Ode à mordaça. Tradução de Julio Luís Gehlen. In: __________. Antologia
poética. Edição bilíngue. Seleção, tradução e apresentação de Julio Luís
Gehlen. Ilustrações de Luiz Trimano. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1988. Em
espanhol: p. 190 e 192; em português: p. 191 e 193.
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