Instado certa vez a escrever
poesia – “ao menos um poema” – sobre os seus gatos, o poeta apresenta aqui os
seus argumentos para declinar dessa empreitada, elaborando, seja como for, versos
sequenciais que se enquadram numa elocução em prosa, “excessivamente corrida e
judiciosa”, a sustentar que tal propósito resultaria em mera replicação dos
gatos ao seu redor para dentro de sua cabeça, com duvidosa apreensão da poesia
no âmbito destes últimos – como seria de se esperar.
Percebe-se na arguição
de Pina a pertinente distinção entre o que seja o poema e o que seja a poesia,
podendo esta última imbricar-se mesmo num texto em prosa – como em muitas linhas
de Pessoa ou de Baudelaire – ou, sob outra mirada, estar ausente numa
composição, ainda que em forma de poema.
J.A.R. – H.C.
Manuel António Pina
(1943-2012)
Uma prosa sobre meus
gatos
Perguntaram-me um dia
destes
ao telefone
por que não escrevia
poesia (ao menos um poema)
sobre os meus gatos;
mas quem se
interessaria
pelos meus gatos,
cuja única evidência
é serem meus (digamos
assim)
e serem gatos
(coisa vasta, mas que
acontece
a todos os da sua
espécie)?
Este poderia
(talvez) ser um tema
(talvez até um tema
nobre),
mas um tema não chega
para um poema
nem sequer para um
poema sobre;
porque é o poema o
tema,
forma apenas.
Depois, os meus gatos
escapam demais à
poesia,
ou de menos, o que
vai dar ao mesmo,
são muito longe
ou muito perto,
e o poema precisa do
tempo certo
de onde possa, como o
gato, dar o salto;
o poema que fizesse
faria deles gatos
abstractos,
literários,
gatos-palavras,
desprezível comércio
de que não me orgulharia
(embora a eles tanto
lhes desse).
Por fim, não existem
“os meus gatos”,
existem uns tantos
gatos-gatos,
um gato, outro gato,
outro gato,
que por um expediente
singular
(que, aliás, também
absolutamente lhes desinteressa)
me é dado nomear e
adjectivar,
isto é, ocultar,
tendo assim uns gatos
em minha casa
e outros na minha
cabeça.
Ora só os da cabeça
alcançaria
(se alcançasse) o
duvidoso processo da poesia.
Fiquei-me por isso
por uma prosa,
e mesmo assim
excessivamente corrida e judiciosa.
31/03/99
Os Músicos
(Henriëtte Ronner: pintora
holando-belga)
Referência:
PINA, Manuel António.
Uma prosa sobre meus gatos. Poesia sempre, MinC – FBN, Rio de Janeiro
(RJ), ano 14, nº 26, p. 84-85, 2007. (Volume ‘Portugal’). Disponível neste endereço. Acesso em: 2 abr.
2024.
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