Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 6 de abril de 2024

Manuel António Pina - Uma prosa sobre meus gatos

Instado certa vez a escrever poesia – “ao menos um poema” – sobre os seus gatos, o poeta apresenta aqui os seus argumentos para declinar dessa empreitada, elaborando, seja como for, versos sequenciais que se enquadram numa elocução em prosa, “excessivamente corrida e judiciosa”, a sustentar que tal propósito resultaria em mera replicação dos gatos ao seu redor para dentro de sua cabeça, com duvidosa apreensão da poesia no âmbito destes últimos – como seria de se esperar.

 

Percebe-se na arguição de Pina a pertinente distinção entre o que seja o poema e o que seja a poesia, podendo esta última imbricar-se mesmo num texto em prosa – como em muitas linhas de Pessoa ou de Baudelaire – ou, sob outra mirada, estar ausente numa composição, ainda que em forma de poema.

 

J.A.R. – H.C.

 

Manuel António Pina

(1943-2012)

 

Uma prosa sobre meus gatos

 

Perguntaram-me um dia destes

ao telefone

por que não escrevia

poesia (ao menos um poema)

sobre os meus gatos;

mas quem se interessaria

pelos meus gatos,

cuja única evidência

é serem meus (digamos assim)

e serem gatos

(coisa vasta, mas que acontece

a todos os da sua espécie)?

Este poderia

(talvez) ser um tema

(talvez até um tema nobre),

mas um tema não chega para um poema

nem sequer para um poema sobre;

porque é o poema o tema,

forma apenas.

Depois, os meus gatos

escapam demais à poesia,

ou de menos, o que vai dar ao mesmo,

são muito longe

ou muito perto,

e o poema precisa do tempo certo

de onde possa, como o gato, dar o salto;

o poema que fizesse

faria deles gatos abstractos,

literários, gatos-palavras,

desprezível comércio de que não me orgulharia

(embora a eles tanto lhes desse).

Por fim, não existem “os meus gatos”,

existem uns tantos gatos-gatos,

um gato, outro gato, outro gato,

que por um expediente singular

(que, aliás, também absolutamente lhes desinteressa)

me é dado nomear e adjectivar,

isto é, ocultar,

tendo assim uns gatos em minha casa

e outros na minha cabeça.

Ora só os da cabeça alcançaria

(se alcançasse) o duvidoso processo da poesia.

Fiquei-me por isso por uma prosa,

e mesmo assim excessivamente corrida e judiciosa.

 

31/03/99

 

Os Músicos

(Henriëtte Ronner: pintora holando-belga)

 

Referência:

 

PINA, Manuel António. Uma prosa sobre meus gatos. Poesia sempre, MinC – FBN, Rio de Janeiro (RJ), ano 14, nº 26, p. 84-85, 2007. (Volume ‘Portugal’). Disponível neste endereço. Acesso em: 2 abr. 2024.

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