Perpassa um espectro de paixão algo platônica em toda a série que integra os “Dez chamamentos ao amigo” – composição que parodia as clássicas “canções de amigo” trovadorescas –, sendo a infratranscrita seção X uma das que mais evidencia a falante a pervagar pela ilimitada região da poesia, um tanto confrangida, é verdade, entre a “matéria da solidão” e os absortos pensamentos centrados no dileto “amigo”.
Não pense o leitor
que tudo não passe de mero exercício de imaginação da poetisa, para dar vazão aos
seus propósitos líricos! Afinal, o poemário “Júbilo, memória, noviciado da paixão”,
de 1974 – de onde transcrito o poema em comento –, possui uma dedicatória que não
deixa margem a dúvidas sobre a existência real do “amigo” a quem direcionado: “A
M.N. / porque ele existe”.
J.A.R. – H.C.
Hilda Hilst
(1930-2004)
Dez chamamentos ao
amigo
IX
Esse poeta em mim
sempre morrendo
Se tenta repetir
salmodiado:
Como te conhecer, arquiteto
do tempo
Como saber de mim,
sem te saber?
Algidez do teu gesto,
minha cegueira
E o casto incendiado
momento
Se ao teu lado me
vejo. As tardes
Fiandeiras, as tardes
que eu amava,
Matéria da solidão,
íntimas, claras
Sofrem a sonolência
de umas águas
Como se um barco
recusasse sempre
A liquidez. Minhas
tardes dilatadas
Sobre-existindo
apenas
Porque à noite retomo
a minha verdade:
Teu contorno, teu
rosto, álgido sim
E por isso, quem
sabe, tão amado.
Em: “Júbilo, memória,
noviciado da paixão” (1974)
Senhora do Mistério
(Edward M. Eggleston:
pintor norte-americano)
Referência:
HILST, Hilda. Esse poeta em mim sempre morrendo. In: __________. Da poesia. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2017. p. 236.
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