Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 27 de abril de 2024

José Jorge Letria - Para que se possa salvar a literatura

A crítica ao “império da banalidade” no mercado das obras literárias leva o poeta a sugerir que as personagens deveriam exterminar os autores, a cada vez que se prestassem aos intentos de uma segunda edição, de superexposição e entrevistas na mídia ou, ainda, à sofreguidão por rendimentos em escalas sempre mais e mais crescentes.

 

Por extensão, penso que também valham as percepções do poeta para uma outra situação bastante frequente, a saber, a atinente às sagas intermináveis, a exemplo das que costumam ocupar as telas de cinema – redigidas no mais das vezes por roteiristas, quando não por escritores que se rendem ao serviço da indústria cultural –, que ficam a rolar numa sequência com claros propósitos arrecadatórios.

 

J.A.R. – H.C.

 

José Jorge Letria

(n. 1951)

 

Para que se possa salvar a literatura

 

Gosto das personagens que morrem

antes do fim das histórias. É a vida.

As que sobrevivem estão condenadas

a um purgatório do qual

nenhuma ficção as resgatará.

As personagens devem ser como os remédios:

devem ter um prazo de validade.

Não gosto que se pergunte:

o que terá acontecido a Bernardo

e a Luísa depois daquele drama?

Há questões que a literatura não pode

nem deve deixar em suspenso. É fatal.

 

Hoje escreve-se já para a segunda edição,

para a cinta que proclama o êxito,

para a entrevista na revista do semanário,

para o império da banalidade.

A sofreguidão do novo leva o mercado

a chamar escritores a alguns transeuntes

que acidentalmente decidiram

fazer da literatura um rendimento fixo,

uma escada em espiral para a glória

dos consultórios de dentista.

 

Nestes casos particulares deviam ser as personagens

a exterminar os autores. Para quê?

Para que se possa ainda salvar a literatura.

 

O Jardim de Armida

(David Teniers, o Jovem: pintor flamengo)

 

Referência:

 

LETRIA, José Jorge. Para que se possa salvar a literatura. In: __________. O livro branco da melancolia. Lisboa, PT: Quetzal Editores, 2001. p. 94-95.

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