A narrativa a que diz
respeito este poema leva-nos a supor que o falante estivesse num exercício de
meditação, caminhando em meio à natureza, procurando limpar a mente – pelo menos
por algum tempo – de toda a espuma acumulada pelos dias na parede da memória, “velhas
ruminações” que o tolhem de experimentar o universo do ser em seu grau superior
de leveza.
Medo da morte,
relacionamentos rompidos e assuntos mal resolvidos muitas vezes entram em
disputa cerrada, na mente, com realidades concorrentes do outro lado da balança
– “doces memórias”, deveres em linha com os propósitos de vida assumidos etc. –,
formando um crisol psíquico fervilhante, a exigir de cada um o necessário
equilíbrio para seguir adiante.
J.A.R. – H.C.
Raymond Carver
(1938-1988)
This morning
This morning was
something. A little snow
lay on the ground.
The sun floated in a clear
blue sky. The sea was
blue, and blue-green,
as far as the eye
could see.
Scarcely a ripple.
Calm. I dressed and went
for a walk –
determined not to return
until I took in what
Nature had to offer.
I passed close to
some old, bent-over trees.
Crossed a field
strewn with rocks
where snow had
drifted. Kept going
until I reached the
bluff.
Where I gazed at the
sea, and the sky, and
the gulls wheeling
over the white beach
far below. All
lovely. All bathed in a pure
cold light. But, as
usual, my thoughts
began to wander. I
had to will
myself to see what I
was seeing
and nothing else. I
had to tell myself this is what
mattered, not the
other. (And I did see it,
for a minute or two!)
For a minute or two
it crowded out the
usual musings on
what was right, and
what was wrong – duty,
tender memories,
thoughts of death, how I should treat
with my former wife.
All the things
I hoped would go away
this morning.
The stuff I live with
every day. What
I’ve trampled on in
order to stay alive.
But for a minute or
two I did forget
myself and everything
else. I know I did.
For when I turned
back i didn’t know
where I was. Until
some birds rose up
from the gnarled
trees. And flew
in the direction I
needed to be going.
Em: “Ultramarine”
(1986)
Homem caminhando numa
trilha ensolarada
(Imagem de autoria
desconhecida)
Esta manhã
Esta manhã foi
especial. Um pouco de neve
cobria o chão. O sol
flutuava num claro
céu azul. O mar
estava azul, e verde-azulado,
até onde o olho podia
enxergar.
Calmo. Quase sem
ondas. Eu me vesti
e saí para caminhar –
decidido a não voltar
até receber o que a
Natureza tivesse a oferecer.
Passei perto de
algumas árvores velhas, curvadas.
Atravessei um campo
com pedras espalhadas
onde a neve se
acumulara. Segui em frente
até chegar ao penhasco.
De onde fitei o mar,
o céu e
as gaivotas revoando
sobre a areia branca,
lá embaixo. Tudo
adorável. Tudo banhado numa pura
luz fria. Mas, como
sempre, meus pensamentos
começaram a vagar.
Tive de me esforçar
para ver só o que
estava vendo,
e nada mais. Tive que
dizer a mim mesmo que aquilo
era o que importava,
não o resto. (E de fato consegui,
por um ou dois
minutos!) Por um ou dois minutos
consegui afastar as
velhas ruminações
sobre o que é certo e
o que é errado – deveres,
doces memórias,
ideias de morte, como lidar
com minha ex-mulher.
Todas as coisas
que eu esperava
esquecer esta manhã.
As coisas com que
vivo todos os dias. Tudo
o que superei para
poder continuar vivo.
Mas, por um ou dois
minutos, eu realmente esqueci
de mim e de tudo o mais.
Sei que esqueci.
Pois quando me virei
já não sabia
onde estava. Até que
alguns pássaros emergiram
das árvores
retorcidas – e voaram
na direção em que eu
precisava seguir.
Em: “Ultramar” (1986)
Referência:
CARVER, Raymond. This
morning / Esta manhã. Tradução de Cide Piquet. In: __________. Esta vida:
poemas escolhidos. Seleção e tradução de Cide Piquet. Edição bilíngue. 1. ed.
São Paulo, SP: Editora 34, 2017. Em inglês: p. 177; em português: p. 93-94.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário