A partir de uma lenda
africana (e quem sabe de quantos outros povos) – segundo a qual a alma,
enquanto o homem dorme, enceta viagem à lua, ao corpo retornando pouco antes de
despertar –, o poeta cubano lavra os presentes versos, envolvendo-os numa pertinente
atmosfera de sonho, da qual a mãe do falante sequer suspeita, estando ao seu
lado.
A julgar pelas
palavras empregadas, o ente lírico, em vigília imerso na mundanidade terrena,
sente-se “preso” neste mundo, alcançando a plena liberdade durante o descanso,
quando o inconsciente dá largas a circunstâncias fantasiosas, muitas delas com
a leveza própria da infância, transitando sem impasses pelo paraíso celeste.
J.A.R. – H.C.
Gastón Baquero
(1914-1997)
Breve viaje nocturno
Según la leyenda
africana,
el alma del durmiente
va a la luna.
Mi madre no sabe que
por la noche,
cuando ella mira mi
cuerpo dormido
y sonríe feliz
sintiéndome a su lado,
mi alma sale de mí,
se va de viaje
guiada por elefantes
blanquirrojos,
y toda la tierra
queda abandonada,
y ya no pertenezco a
la prisión del mundo,
pues llego hasta la
luna, desciendo
en sus verdes ríos y
en sus bosques de oro,
y pastoreo rebaños de
tiernos elefantes,
y cabalgo los dóciles
leopardos de la luna,
y me divierto en el
teatro de los astros
contemplando a
Júpiter danzar, reír a Hyleo.
Y mi madre no sabe
que al otro día,
cuando toca en mi
hombro y dulcemente llama,
yo no vengo del
sueño: yo he regresado
pocos instantes
antes, después de haber sido
el más feliz de los
niños, y el viajero
que despaciosamente
entra y sale del cielo,
cuando la madre llama
y obedece el alma.
1962
Um sonho
(Olivier Menanteau:
artista francês)
Breve viagem noturna
Segundo a lenda
africana,
a alma do adormecido
vai à lua.
Minha mãe não sabe
que durante a noite,
quando ela olha para
o meu corpo adormecido
e sorri feliz ao
sentir-me a seu lado,
minha alma, saindo de
mim, parte em viagem
guiada por elefantes alvirrubros,
e toda a terra fica deserta,
e já não pertenço à
prisão do mundo,
pois logo chego à
lua, desço
em seus verdes rios e
bosques dourados,
pastoreio manadas de ternos elefantes,
cavalgo os dóceis
leopardos lunares,
e entretenho-me no
teatro dos astros
assistindo à dança de
Júpiter e ao riso de Hileu. (*)
E, no dia seguinte,
minha mãe não sabe,
quando toca meu ombro
e chama-me docemente,
que não venho do sonho:
voltei
alguns momentos
antes, depois de ter sido
a mais feliz das
crianças, e o viajante
que lentamente entra
e sai do céu,
quando a mãe chama e
a alma obedece.
1962
Nota:
(*). A rigor, dúvidas
ainda me inquietam sobre a pesquisa que levei a efeito para deslindar as razões
de o poeta fazer menção a “Hyleo” e o seu riso, tanto mais em face de que o
aludido nome tem algo em seu radical que me faz lembrar a palavra “hilário” –
adjetivo em franca associação com o substantivo “riso”. Seja como for, vão aqui
os pontos por mim levantados, podendo o internauta acrescer, ratificar ou retificar,
em eventuais comentários, o quanto neles se dilucida.
Hyleo, ou Hileu, no
âmbito da mitologia grega, é um dos centauros arcádios que procuravam raptar
Atalanta para violentá-la, tendo ferido gravemente Milânion, um dos
pretendentes da jovem, que, em desagravo, matou-o com uma de suas flechas. Outra
distinta tradição advogava que Hileu participou na luta entre os Centauros e os
Lápidas, tendo sido morto não por Atalanta, mas por Teseu; ou ainda, por Héracles
(Hércules), em combate nas terras de Folo. (GRIMAL, 2005, p. 228)
Considerando o
sentido astronômico deduzível ao verso no qual se nomeia Hileu, cumpre observar
que os centauros são corpos celestes menores, a meio caminho entre os asteroides
e os cometas, logo justificável tal designação em face de os centauros serem criaturas metade
homens metade cavalos.
Nada obstante, o correspondente nome em grafia latina, “Hylaeus”, diz
respeito a um exoplaneta, isto é, um planeta fora do sistema solar – e não a um
centauro –, identificado como “HD 117618 b”, muito embora pertencente à
constelação de Centaurus (v. neste endereço).
Referências:
BAQUERO, Gastón.
Breve viaje nocturno. In: WEISS, Mark (Ed.). The whole island: six
decades of cuban poetry. A bilingual anthology: spanish x english. Berkeley and
Los Angeles, CA: University of California Press, 2009. p. 120.
GRIMAL, Pierre. Dicionário
da mitologia grega e romana. Tradução de Victor Jabouille. 5. ed. Rio de
Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 2005.
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