Que a poesia de Parra
tem muito de iconoclasta, provocativa, incitadora a saltos intrépidos de perspectiva,
já não há tanto a se expender em palavras: melhor é deixar a lírica do próprio
autor chileno dizer por si, como nas linhas deste breve poema, a moverem o leitor,
de início, a um determinado caminho – pretensamente hierático –, mas que, ao fim,
se nos revela profano demais!
O título concedido ao
poema – “A cruz” –, com toda a sua carga polissêmica, muito se presta a criar a
ambivalência tencionada pelo poeta, vertida em opostos como o sacro e o obsceno,
o transcendente e o vulgar, o espiritual e o material, o conspícuo e o pilhérico,
podendo-se deduzir, pela forma como dispostos os versos, que Parra deixa para
explicitar, no final, o “modus vivendi” que mais lhe apraz.
J.A.R. – H.C.
Nicanor Parra
(1914-2018)
La cruz
Tarde o temprano
llegaré sollozando
a los brazos abiertos
de la cruz.
Más temprano que
tarde caeré
de rodillas a los
pies de la cruz.
Tengo que resistirme
para no desposarme
con la cruz:
¡ven como ella me
tiende los brazos?
No será hoy
mañana
ni pasado
mañana
pero será lo que
tiene que ser.
Por ahora la cruz es
un avión
una mujer con las
piernas abiertas.
Em: “Obra gruesa” (1969)
Mulher sentada com as
pernas abertas
(Gustav Klimt: pintor
austríaco)
A cruz
Cedo ou tarde
chegarei soluçando
Aos braços abertos da
cruz.
Mais cedo que tarde
cairei
Ajoelhado aos pés da
cruz.
Tenho que resistir
Para não me casar com
a cruz:
Veem como ela me
estende os braços?
Não será hoje
amanhã
nem depois
de amanhã
mas será o que tem de
ser.
Por enquanto a cruz é
um avião
uma mulher com as
pernas abertas.
Em: “Obra grossa”
(1969)
Referência:
PARRA, Nicanor. La cruz / A cruz. Tradução de Joana Barossi e Cide Piquet. In: __________. Só para maiores de cem anos: antologia (anti)poética. Seleção e tradução de Joana Barossi e Cide Piquet. Edição bilíngue. 1. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 2018. Em espanhol: p. 239; em português: p. 126.
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