Esta crônica da
escritora e poetisa gaúcha, adaptada em diversos pontos e traduzida ao espanhol
(bem como a outros idiomas) sob a forma de versos, foi reiteradamente atribuída
ao poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), suscitando a elaboração de matérias
esclarecedoras sobre o tema, a exemplo da publicada originalmente no endereço
eletrônico do Estadão, mas aqui
transcrita em página da L&PM, editora de boa parte das obras de Martha Medeiros.
A mais frequente
versão do poema, em espanhol, pode ser encontrada neste
endereço: aos olhos do leitor mais atento sobressai a evidente inserção de versos
que replicam parte de ideias de terceiros autores, a exemplo do que consta nas
duas últimas
linhas, reformulando a prosa de Rimbaud na derradeira
seção “Adieu” (“Adeus”), em “Une saison em enfer” (“Uma temporada no inferno”),
de 1873. Veja-se (traduções minhas):
“Solamente la
ardiente paciencia hará que conquistemos una espléndida felicidad.”
“Somente a ardente
paciência fará que conquistemos uma esplêndida felicidade.”
Compare-se à elocução
de Rimbaud (1984, p. 152):
“Et à l’aurore, armés
d’une ardente patience, nous entrerons aux splendides villes.”
“E, ao romper da
aurora, armados de uma ardente paciência, entraremos em esplêndidas cidades.”
Assim, entre recorrentes
falsas atribuições de autoria, segue a internet a difundir, em tais casos,
desinformação.
J.A.R. – H.C.
Martha Medeiros
(n. 1961)
A Morte Devagar
Morre lentamente quem não troca de ideias, não troca de discurso, evita
as próprias contradições.
Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias o
mesmo trajeto e as mesmas compras no supermercado. Quem não troca de marca, não
arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece.
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru e seu parceiro diário.
Muitos não podem comprar um livro ou uma entrada de cinema, mas muitos podem, e
ainda assim alienam-se diante de um tubo de imagens que traz informação e
entretenimento, mas que não deveria, mesmo com apenas quatorze polegadas,
ocupar tanto espaço em uma vida.
Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e
os pingos nos is a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que
resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços,
sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite,
uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem
não acha graça de si mesmo.
Morre lentamente quem destrói seu amor-próprio. Pode ser depressão, que
é doença séria e requer ajuda profissional. Então fenece a cada dia quem não se
deixa ajudar.
Morre lentamente quem não trabalha e quem não estuda, e na maioria das
vezes isso não é opção e, sim, destino: então um governo omisso pode matar
lentamente uma boa parcela da população.
Morre lentamente quem passa os dias se queixando da má sorte ou da chuva
incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre
um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe.
Morre muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e traiçoeira, pois
quando ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados para
percorrer o pouco tempo restante. Já que não podemos evitar um final repentino,
que ao menos evitemos a morte em suaves prestações, lembrando sempre que estar
vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar.
Novembro de 2000
Morrer lentamente
(Leonard Rubins:
artista esloveno)
Referências:
MEDEIROS, Martha. A
morte devagar. In: __________. Non-stop: crônicas do cotidiano. Porto
Alegre, RS: L&PM, 2007. p. 145-146. (Coleção ‘L&PM Pocket’; v. 655)
RIMBAUD, Arthur. Poésies
/ Une saison em enfer / Illuminations. Préface de René Char. Édition
établie par Louis Forestier. Seconde édition revue. Paris, FR: Gallimard, 1984.
(Collection ‘Poésie’; v. 87). Disponível neste
endereço. Acesso em: 2 abr. 2024.
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