Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 25 de dezembro de 2022

António Gedeão - Dia de Natal

Neste descritivo poema, Gedeão pormenoriza a sua visão sobre o desatino em que se transformou a quadra natalina, imoderada compulsão em se adentrar a roda do consumismo, de comprar a todo custo, pouco importando se o orçamento familiar acomoda mais um dispêndio, pois que todos devem ser agraciados com algum presente, independentemente do aperto financeiro pelo qual se passe, bastando usar o cartão de crédito, de forma a postergar o problema para um porvir, imediato ou remoto.

 

Deplora ainda o poeta o fato de que alguns presentes, ao invés de fomentar o espírito de aproximação, de amor e de paz – indissociáveis das mensagens de Cristo –, incitam exatamente o ânimo oposto, de brigas e dissensões, bastando ver certos brinquedos que, vocacionados bem mais aos guris do que às meninas, põem-nos em contato com réplicas de armamentos pesados, como fuzis ou metralhadoras, símbolos cabais de fúria e de agressão.

 

J.A.R. – H.C.

 

António Gedeão

(1906-1997)

 

Dia de Natal

 

Hoje é dia de ser bom.

É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,

de falar e de ouvir com mavioso tom,

de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

 

É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,

de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,

de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,

de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

 

Comove tanta fraternidade universal.

É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,

como se de anjos fosse,

numa toada doce,

de violas e banjos,

entoa gravemente um hino ao Criador.

E mal se extinguem os clamores plangentes,

a voz do locutor

anuncia o melhor dos detergentes.

 

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu

e as vozes crescem num fervor patético.

(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?

Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio

de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.

Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.

Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas

e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

 

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,

com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,

cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,

as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

 

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,

ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.

É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,

como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

 

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.

Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.

E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento

e compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.

 

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.

Naquela véspera santa

a sua comoção é tanta, tanta, tanta,

que nem dorme serena.

 

Cada menino

abre um olhinho

na noite incerta

para ver se a aurora

já está desperta.

 

De manhãzinha,

salta da cama,

corre à cozinha

mesmo em pijama.

 

Ah!!!!!!!!!!

 

Na branda macieza

da matutina luz

aguarda-o a surpresa

do Menino Jesus.

 

Jesus

o doce Jesus,

o mesmo que nasceu na manjedoura,

veio pôr no sapatinho

do Pedrinho

uma metralhadora.

 

Que alegria

reinou naquela casa em todo o santo dia!

O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,

fuzilava tudo com devastadoras rajadas

e obrigava as criadas

a caírem no chão como se fossem mortas:

tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

 

Já está!

E fazia-as erguer para de novo matá-las.

E até mesmo a mamã e o sisudo papá

fingiam

que caíam

crivados de balas.

 

Dia de Confraternização Universal,

Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,

de Sonhos e Venturas.

É dia de Natal.

Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.

Glória a Deus nas Alturas.

 

Em: “Máquina de Fogo” (1961)

 

Criança-soldado

(Bansky: artista inglês)

 

Referência:

 

GEDEÃO, António. Dia de Natal. In: __________. Poemas escolhidos. Antologia organizada pelo autor. 3. ed. Lisboa, PT: Edições João Sá da Costa, set. 1997. p. 43-47.


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