Achebe, o reconhecido
autor de “O Mundo se Despedaça” (“Things Fall Apart”), de 1958, descreve neste
poema um Natal passado em 1969, em Biafra, estado secessionista a sudeste da
Nigéria – país do qual hoje faz parte.
A guerra civil de então
vitimou dezenas de milhares e um quadro de fome sobreveio sobre grande parte da
população: uma mãe e seu esquálido filho é o retrato que se fixa na mente do
leitor destes versos, ela devotamente cristã, e o menino, sofrendo as misérias
da desnutrição, sem sequer exibir algum contentamento com as imagens que lhe
são mostradas de um presépio.
Resta um sentimento
de desesperança em relação à situação presenciada pelo falante, grave e dramática,
ou como este ousa metaforizá-la, “um inferno explosivo”, logo na época do Natal,
a tanto evocar cantatas pacíficas em outras plagas.
J.A.R. – H.C.
Chinua Achebe
(1930-2013)
Christmas in Biafra
This sunken-eyed
moment wobbling
down the rocky steepness
on broken
bones slowly
fearfully to hideous
concourse of
gathering sorrows in the valley
will yet become in
another year a lost
Christmas
irretrievable in the heights
its exploding inferno
transmuted
by cosmic distances
to the peacefulness
of a cool twinkling
star... To death-cells (*)
of that moment came
faraway sounds of other
men’s carols floating
on crackling waves
mocking us. With
regret? Hope? Longing? None of
these, strangely, not
even despair rather
distilling pure
transcendental hate...
Beyond the hospital
gate
the good nuns had set
up a manger
of palms to house a
fine plastercast
scene at Bethlehem.
The Holy
Family was central,
serene, the Child
Jesus plump
wise-looking and rose-cheeked; one
of the magi in
keeping with legend
a black Othello in
sumptuous robes. Other
figures of men and
angels stood
at well-appointed
distances from
the heart of the
divine miracle
and the usual cattle
gazed on
in holy wonder...
Poorer than the poor
worshippers
before her who had
paid their homage
with pitiful offering
of new aluminum
coins that few
traders would take and
a frayed
five-shilling note she only
crossed herself and
prayed open-eyed. Her
infant son flat like
a dead lizard
on her shoulder his
arms and legs
cauterized by famine
was a miracle
of its kind. Large
sunken eyes
stricken past boredom
to a flat
unrecognizing
glueyness moped faraway
motionless across her
shoulder...
Now her adoration
over
she turned him around
and pointed
at those pretty
figures of God
and angels and men
and beasts –
a spectacle to stir
the heart
of a child. But all
he vouchsafed
was one slow deadpan
look of total
unrecognition and he
began again
to swivel his
enormous head away
to mope as before at
his empty distance...
She shrugged her
shoulders, crossed
herself again, and
took him away.
(1969)
Enigma
(Imoesi Imhonigie:
pintor nigeriano)
Natal em Biafra
Este momento de olhos
encovados que descem
titubeantes pela
escarpa rochosa sobre ossos
partidos, lenta e
temerosamente, até o hediondo
afluxo de dores
acumuladas no vale,
ainda se converterá
em outro ano, em um perdido
e irrecuperável Natal
nas alturas,
seu inferno explosivo
transmutado,
por distâncias
cósmicas, à paz
de uma fria estrela
cintilante... Às celas da morte
desse momento
chegaram sons distantes do cântico
de outros homens, em
ondas crepitantes
zombando de nós. Com pesar?
Esperança? Sofreguidão?
Nada disso, estranhamente,
nem mesmo desespero
a destilar puro ódio transcendental...
Mais à frente do
portão do hospital,
as boas freiras
haviam montado uma manjedoura
de palmeiras para
abrigar a bela cena de Belém,
modelada em gesso. A
Sagrada
Família estava no
centro, serena, o Menino
Jesus rechonchudo, de
sábia aparência e faces rosadas;
um dos magos, de
acordo com a lenda,
qual Otelo negro em
trajes suntuosos. Outras
figuras de homens e
anjos estavam de pé,
a distâncias bem
demarcadas
do coração do milagre
divino,
e o gado habitual a
tudo contemplava
com sagrada
admiração...
Mais pobre do que os
pobres devotos
que a precederam e
que haviam rendido sua homenagem
com uma lamentável
oferta de novas moedas
de alumínio, que
poucos comerciantes aceitariam, e
uma desgastada nota
de cinco xelins, ela apenas
se benzeu e rezou com
olhos abertos. Seu
pequeno filho
estendido como um lagarto morto
sobre o ombro, seus
braços e pernas
cauterizados pela
fome, era algo como
um milagre. Grandes
olhos encovados,
atormentados pela lassidão
do passado até uma monocórdia
e irreconhecível
viscosidade, vagueavam inertes
e distantes por cima
de seu ombro.
Uma vez finda a sua
oração,
ela virou o filho e
lhe apontou
aquelas belas figuras
de Deus
e anjos e homens e
animais –
um espetáculo para
comover o coração
de uma criança. Mas
tudo o que ele se permitiu
foi um olhar lento e
inexpressivo de total
ausência de
reconhecimento, começando outra vez
a girar sua enorme
cabeça para o lado oposto,
para se esmorecer
como antes em sua vazia distância...
Ela encolheu os
ombros, benzeu-se
novamente e o levou
embora.
(1969)
Nota:
(*). Death-cells:
celas de prisão para condenados à morte.
Referência:
ACHEBE, Chinua. Christmas in Biafra (1969). In: __________. Collected poems. New York, NY: Anchor Books, aug. 2004. p. 17-18.
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