Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Benjamin Péret - Hoje

O que se poderia concluir, num plano de lógica e de interpretação, deste poema de Péret, proeminentemente surrealista, como se saído fosse diretamente do divã de um psicanalista, onde um paciente estivesse a pronunciar, em associação livre, tudo o que lhe ocorre à cabeça, quer faça sentido quer não?!...

 

Péret atribui à escrita dos presentes versos – sua existência, portanto – ao fato de que nem ele nem sua presumível companheira se encontravam no aqui e agora vinculado à eclosão do aludido poema: bem, em que consistiria a presença do próprio poeta no ato de redação do poema, se este atribui à ausência de si próprio uma das razões cruciais para que o poema se materializasse na página? Na vacuidade do poeta, a vacuidade do poema – composição heteróclita nascida de um psicodélico ‘brainstorming’!

 

J.A.R. – H.C.

  

Benjamin Péret

(1899-1959)

 

Aujourd’hui

 

Il y a des cris à n’en plus finir

des braillements de terre agitée comme un éventail démantelé

par des taupes en conserve

des sanglots de planches qu’on étripe longs comme une

locomotive qui va naître

des convulsions d’arbres révoltés qui ne veulent pas plus laisser

monter la sève

que le métro ne permet la circulation des autruches

dans les tunnels de barbe mal rasée

 

Il y a des cris

des araignées de vitriol que j’avale sans m’en apercevoir

près de ce fleuve usé issu d’un tuyau de pipe

qui n’est autre qu’un long museau

un peu chaudun peu plus grognon qu’un chaudron presque vide

ce fleuve que tu ne vois pas plus que la poussière d’une hostie

que le vent a mélangée

à la poussière du curé semblable à du sulfate de cuivre

et à celle de l’église plus tordue qu’un vieux tire-bouchon

car tu n’es pas là

et moi non pluss

ans quoi je n’aurais pas écrit ce poèm

 

Nostalgia de locomotivas a vapor nº 34

(Kishore Pratim Biswas: artista indiano)

 

Hoje

 

Há gritos intermináveis

berros de terra agitada como uma ventarola desmantelada

por toupeiras em conserva

soluços de pranchas que se estripam ao comprido como

uma locomotiva

que vai nascer

das convulsões de árvores revoltadas que não querem mais deixar

fluir a seiva

que o metrô não (*) permite a circulação dos avestruzes

nos túneis de barba mal feita

 

Há gritos

de aranhas de vitriol que sorvo sem perceber

perto deste rio usado saído de um tubo de cachimbo

que é apenas um longo focinho

um pouco quente

um pouco mais resmungão que um caldeirão quase vazio

este rio que você não vê mais do que a poeira de uma hóstia

que o vento mesclou

à poeira do cura semelhante à do sulfato de cobre

e àquela da igreja mais torcida que um velho saca-rolhas

porque você não está

eu também não

sem o que não teria escrito este poema

 

Folhetim, 08.08.82

 

Nota:

 

(*) O advérbio “não”, a rigor, não consta na tradução de Pepe Escobar, embora se o possa deduzir do original em francês, mais acima.

 

Referências:

 

Em Francês

 

PERÉT, Benjamin. Aujourd’hui. Disponível neste endereço. Acesso em: 1º dez. 2022.

 

Em Português

 

PERÉT, Benjamin. Hoje. Tradução de Pepe Escobar. In: SUZUKI JR., Matinas; ASCHER, Nelson (Organizadores). Folhetim: poemas traduzidos. São Paulo, SP: Folha de São Paulo, 1987. p. 109.

Nenhum comentário:

Postar um comentário