O que se poderia concluir,
num plano de lógica e de interpretação, deste poema de Péret, proeminentemente
surrealista, como se saído fosse diretamente do divã de um psicanalista, onde
um paciente estivesse a pronunciar, em associação livre, tudo o que lhe ocorre à
cabeça, quer faça sentido quer não?!...
Péret atribui à escrita
dos presentes versos – sua existência, portanto – ao fato de que nem ele nem sua
presumível companheira se encontravam no aqui e agora vinculado à eclosão do aludido
poema: bem, em que consistiria a presença do próprio poeta no ato de redação do
poema, se este atribui à ausência de si próprio uma das razões cruciais para
que o poema se materializasse na página? Na vacuidade do poeta, a vacuidade do
poema – composição heteróclita nascida de um psicodélico ‘brainstorming’!
J.A.R. – H.C.
Benjamin Péret
(1899-1959)
Aujourd’hui
Il y a des cris à n’en
plus finir
des braillements de
terre agitée comme un éventail démantelé
par des taupes en
conserve
des sanglots de
planches qu’on étripe longs comme une
locomotive qui va
naître
des convulsions d’arbres
révoltés qui ne veulent pas plus laisser
monter la sève
que le métro ne
permet la circulation des autruches
dans les tunnels de
barbe mal rasée
Il y a des cris
des araignées de
vitriol que j’avale sans m’en apercevoir
près de ce fleuve usé
issu d’un tuyau de pipe
qui n’est autre qu’un
long museau
un peu chaudun peu
plus grognon qu’un chaudron presque vide
ce fleuve que tu ne
vois pas plus que la poussière d’une hostie
que le vent a
mélangée
à la poussière du
curé semblable à du sulfate de cuivre
et à celle de l’église
plus tordue qu’un vieux tire-bouchon
car tu n’es pas là
et moi non pluss
ans quoi je n’aurais
pas écrit ce poèm
Nostalgia de
locomotivas a vapor nº 34
(Kishore Pratim Biswas:
artista indiano)
Hoje
Há gritos
intermináveis
berros de terra
agitada como uma ventarola desmantelada
por toupeiras em
conserva
soluços de pranchas
que se estripam ao comprido como
uma locomotiva
que vai nascer
das convulsões de árvores
revoltadas que não querem mais deixar
fluir a seiva
que o metrô não (*) permite
a circulação dos avestruzes
nos túneis de barba
mal feita
Há gritos
de aranhas de vitriol
que sorvo sem perceber
perto deste rio usado
saído de um tubo de cachimbo
que é apenas um longo
focinho
um pouco quente
um pouco mais
resmungão que um caldeirão quase vazio
este rio que você não
vê mais do que a poeira de uma hóstia
que o vento mesclou
à poeira do cura
semelhante à do sulfato de cobre
e àquela da igreja
mais torcida que um velho saca-rolhas
porque você não está
eu também não
sem o que não teria
escrito este poema
Folhetim, 08.08.82
Nota:
(*) O advérbio “não”, a rigor, não consta na tradução de Pepe Escobar,
embora se o possa deduzir do original em francês, mais acima.
Referências:
Em Francês
PERÉT, Benjamin. Aujourd’hui.
Disponível neste
endereço. Acesso em: 1º dez. 2022.
Em Português
PERÉT, Benjamin. Hoje.
Tradução de Pepe Escobar. In: SUZUKI JR., Matinas; ASCHER, Nelson
(Organizadores). Folhetim: poemas traduzidos. São Paulo, SP: Folha de
São Paulo, 1987. p. 109.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário