Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Carlos Drummond de Andrade - A Um Senhor de Barbas Brancas

Dedicado à figura do Papai Noel, este poema de Drummond busca desconstruir a ideia de que ‘Santa Claus’ seria uma fantasia e, portanto, não existiria de fato: afinal, se ele está por toda parte na época natalina, como então desconsiderá-lo, se há razões suficientes para atrelar a sua imagem ao ‘marketing’ das lojas de departamentos, em busca de alavancar as suas vendas no período?!

 

Como diz o vate itabirano, o mito acaba por criar a realidade concreta, resultando na mescla do secular, digo melhor, do manifestamente comercial com o religioso, condensando assim, na estampa vetusta de um bondoso velhinho, quer a propensão a se conceder presentes dispendiosos às classes privilegiadas, quer a de se intervir para a recolha de donativos àqueles em situação de carência, em linha com os princípios da caridade cristã.

 

J.A.R. – H.C.

 

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

 

A Um Senhor de Barbas Brancas

 

Inscreves-te no concurso em Brasília e és aprovado

(línguas, noções de turismo, comunicabilidade),

chegas de locomotiva à festa dos portuários,

desces de helicóptero na Colônia Juliano Moreira,

passeias equipado de robô na rua da Alfândega,

vais de jato a Lisboa cumprimentar o cardeal Cerejeira,

fundas a Fundação que perpetuará teu nome,

e dizem, Papai Noel, que não existes?

 

Garotos podem apertar-te a mão na rua do Ouvidor.

Sessent’anos marcados pela vida

e pelo dente do salário mínimo.

És gordo. Estás suado. Tens cecê.

Também, com este calor de patropi,

queriam que recendesses a lavanda?

 

És mito, estás por fora do contexto?

O mito,

cada vez mais concreto em toda parte,

motiva os homens, cria o novo real.

A floresta de mitos desenrola

verdinegra folhagem sobre a Terra.

Por eles, vida e morte se defrontam

no combate de imagens.

Outro Natal, nos ossos velhos do Natal,

impõe seu rito, a força de seu mito.

 

Dás (vendes) geladeiras que teu gelo

vai vestindo de neve e crediário.

Vendes

o relógio, a peruca, o blended scotch, (1)

o biquíni, o recheio do biquíni,

vendes rena e trenó (carro hidramático),

a ideia de Natal & outras ideias.

Ladino corretor,

vendes a ideia prístina de amor.

 

Só não creem em ti os visionários,

que agrides com teu estar perto e pegável.

Sonhavam-te incorpóreo: bruma de alma,

dar sem mãos, no ar aberto em vilancicos:

tudo que o aposentado do Correio

ou da Central ou da Sursan (2)

ao preço de um biscate de dezembro

ou mesmo o concursado poliglota

não pode ser

nem parecer

nem dar.

 

Se Eliot despreza

the social, the torpid, the patently commercial

attitude towards Christmas, que importa? (3)

Não és criador; és o criado,

que na bandeja trazes o mistério

trocado em coisas. Uma ternura antiga,

um carinho mais velho do que Cristo

reparte os bens a Cristo recusados.

Se não reparte justo,

se nega, esconde, furta

o anel à namorada que o pedia,

se estende a muitos um pudim de pedra

& sangue, sob a glace,

que culpa tens do feixe de pecados,

em prendas nos teus ombros convertido?

 

Père Noël, Father Christmas, Papai (4)

adocicadamente brasileiro,

velhacamente avô de dez milhões de netos

alheios e informados,

tão afeito à mentira que mentimos

o ano inteiro e em dobro no Natal,

não te cansas, velhinho,

de jogar nosso jogo, de vender-nos

uma xerox da infância com borrões?

Não te enfada

ser mensageiro da mensagem torta

com método apagada

tão logo transmitida?

 

Sob o veludo amarfanhado

de teu uniforme de serviço,

na rosa rubra de dezembro,

junto ao berço de palha de um menino,

percebo a tristeza do mito

que aos homens se aliou para iludir

nossa fome de Deus na hora divina.

 

25/12/1969

 

Entrega especial do Papai Noel

(Thomas Kinkade: pintor norte-americano)

 

Notas:

 

(1). Blended Scotch: famosa marca de uísque mesclado escocês;

 

(2). Drummond menciona três entidades que operavam à época em que redigiu o poema, na cidade do Rio de Janeiro: a Central do Brasil, os Correios e a Sursan – Superintendência de Urbanização e Saneamento, então responsável pela execução de obras públicas na capital carioca;

 

(3). Excerto extraído ao poema “The Cultivation of Christmas Trees” (“O Cultivo das Árvores de Natal”), de 1954, de autoria do poeta anglo-americano T. S. Eliot (1888-1965): “Há várias atitudes em relação ao Natal, algumas das quais podemos desprezar: a social, a tórpida, a manifestamente comercial, a barulhenta (os pubs ficam abertos até meia-noite) e a infantil (...)”;

 

(4). Expressões para “Papai Noel”, respectivamente, em francês e em inglês.

 

Referência:

 

ANDRADE, Carlos Drummond. A um senhor de barbas brancas. In: __________. Versiprosa: crônica da vida cotidiana e de algumas miragens. Posfácio de Leandro Sarmatz. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2017. p. 259-261.


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