Dedicado à figura do
Papai Noel, este poema de Drummond busca desconstruir a ideia de que ‘Santa
Claus’ seria uma fantasia e, portanto, não existiria de fato: afinal, se ele
está por toda parte na época natalina, como então desconsiderá-lo, se há razões
suficientes para atrelar a sua imagem ao ‘marketing’ das lojas de departamentos,
em busca de alavancar as suas vendas no período?!
Como diz o vate itabirano,
o mito acaba por criar a realidade concreta, resultando na mescla do secular, digo
melhor, do manifestamente comercial com o religioso, condensando assim, na
estampa vetusta de um bondoso velhinho, quer a propensão a se conceder
presentes dispendiosos às classes privilegiadas, quer a de se intervir para a
recolha de donativos àqueles em situação de carência, em linha com os
princípios da caridade cristã.
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de
Andrade
(1902-1987)
A Um Senhor de Barbas
Brancas
Inscreves-te no
concurso em Brasília e és aprovado
(línguas, noções de
turismo, comunicabilidade),
chegas de locomotiva
à festa dos portuários,
desces de helicóptero
na Colônia Juliano Moreira,
passeias equipado de
robô na rua da Alfândega,
vais de jato a Lisboa
cumprimentar o cardeal Cerejeira,
fundas a Fundação que
perpetuará teu nome,
e dizem, Papai Noel,
que não existes?
Garotos podem
apertar-te a mão na rua do Ouvidor.
Sessent’anos marcados
pela vida
e pelo dente do
salário mínimo.
És gordo. Estás
suado. Tens cecê.
Também, com este
calor de patropi,
queriam que
recendesses a lavanda?
És mito, estás por
fora do contexto?
O mito,
cada vez mais
concreto em toda parte,
motiva os homens,
cria o novo real.
A floresta de mitos
desenrola
verdinegra folhagem
sobre a Terra.
Por eles, vida e
morte se defrontam
no combate de
imagens.
Outro Natal, nos
ossos velhos do Natal,
impõe seu rito, a
força de seu mito.
Dás (vendes)
geladeiras que teu gelo
vai vestindo de neve
e crediário.
Vendes
o relógio, a peruca,
o blended scotch, (1)
o biquíni, o recheio
do biquíni,
vendes rena e trenó
(carro hidramático),
a ideia de Natal
& outras ideias.
Ladino corretor,
vendes a ideia
prístina de amor.
Só não creem em ti os
visionários,
que agrides com teu
estar perto e pegável.
Sonhavam-te
incorpóreo: bruma de alma,
dar sem mãos, no ar
aberto em vilancicos:
tudo que o aposentado
do Correio
ou da Central ou da
Sursan (2)
ao preço de um
biscate de dezembro
ou mesmo o concursado
poliglota
não pode ser
nem parecer
nem dar.
Se Eliot despreza
the social, the
torpid, the patently commercial
attitude towards
Christmas, que importa? (3)
Não és criador; és o
criado,
que na bandeja trazes
o mistério
trocado em coisas.
Uma ternura antiga,
um carinho mais velho
do que Cristo
reparte os bens a
Cristo recusados.
Se não reparte justo,
se nega, esconde,
furta
o anel à namorada que
o pedia,
se estende a muitos
um pudim de pedra
& sangue, sob a glace,
que culpa tens do
feixe de pecados,
em prendas nos teus
ombros convertido?
Père Noël, Father Christmas,
Papai (4)
adocicadamente
brasileiro,
velhacamente avô de
dez milhões de netos
alheios e informados,
tão afeito à mentira
que mentimos
o ano inteiro e em
dobro no Natal,
não te cansas,
velhinho,
de jogar nosso jogo,
de vender-nos
uma xerox da
infância com borrões?
Não te enfada
ser mensageiro da mensagem
torta
com método apagada
tão logo transmitida?
Sob o veludo
amarfanhado
de teu uniforme de
serviço,
na rosa rubra de
dezembro,
junto ao berço de
palha de um menino,
percebo a tristeza do
mito
que aos homens se
aliou para iludir
nossa fome de Deus na
hora divina.
25/12/1969
Entrega especial do
Papai Noel
(Thomas Kinkade:
pintor norte-americano)
Notas:
(1). Blended Scotch: famosa marca de uísque mesclado escocês;
(2). Drummond menciona três entidades que operavam à época em que redigiu
o poema, na cidade do Rio de Janeiro: a Central do Brasil, os Correios e a
Sursan – Superintendência de Urbanização e Saneamento, então responsável pela execução
de obras públicas na capital carioca;
(3). Excerto extraído ao poema “The Cultivation of Christmas Trees” (“O
Cultivo das Árvores de Natal”), de 1954, de autoria do poeta anglo-americano T.
S. Eliot (1888-1965): “Há várias atitudes em relação ao Natal, algumas das
quais podemos desprezar: a social, a tórpida, a manifestamente comercial, a
barulhenta (os pubs ficam abertos até meia-noite) e a infantil (...)”;
(4). Expressões para “Papai Noel”, respectivamente, em francês e em
inglês.
Referência:
ANDRADE, Carlos
Drummond. A um senhor de barbas brancas. In: __________. Versiprosa:
crônica da vida cotidiana e de algumas miragens. Posfácio de Leandro Sarmatz. 1.
ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2017. p. 259-261.
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