Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Lya Luft - Pressentimento

Ainda criança, em plena estação natalina, no aconchego do colo paterno e a ouvir a mãe tocando piano, a voz lírica pressentia o quanto todos somos passageiros a vogar sobre as “águas do mundo”, as quais, num dado – muito embora incerto – dia, haverão de romper as comportas do espaço e do tempo, levando-nos ao ponto de só restarem, de nossas histórias de vida, velhos retratos no fundo de uma mala.

 

Talvez fosse a suspeição de que momentos de plenitude e de ternura não logrem configurar cláusula de perpetuidade, pois que, em torno de nós, há sempre o ostensivamente contingente e efêmero, ou por outra, a morte, em seus mistérios, mantém-se à espreita, a cada instante, de toda mescla orgânica de carne, ossos e sangue.

 

J.A.R. – H.C.

 

Lya Luft

(1938-2021)

 

Pressentimento

 

Quando eu era menina,

minha mãe tocava piano

e a árvore de Natal girava

em sua pinha de ferro batido.

Eu cochilava no colo de meu pai:

dentro do peito dele pulsava

a máquina da vida que nunca se cala.

(Mas uma coisa escura e sorrateira

fazia rumor fora da casa:

era o destino chegando

passo a passo, e eu não sabia.)

 

Junto ao coração de meu pai,

ao ritmo da música do sangue,

meu coração também estremecia:

a faca cortando a minha alma

era pressentir que as águas do mundo

inundariam o tempo e o espaço,

e seríamos um dia os rostos naufragados

de um velho retrato numa mala.

 

A noite anterior ao Natal

(Sandra Kuck: artista norte-americana)

 

Referência:

 

LUFT, Lya. Pressentimento. In: __________. Para não dizer adeus. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2005. p. 67.


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