Ainda criança, em
plena estação natalina, no aconchego do colo paterno e a ouvir a mãe tocando piano,
a voz lírica pressentia o quanto todos somos passageiros a vogar sobre as “águas
do mundo”, as quais, num dado – muito embora incerto – dia, haverão de romper as
comportas do espaço e do tempo, levando-nos ao ponto de só restarem, de nossas histórias
de vida, velhos retratos no fundo de uma mala.
Talvez fosse a
suspeição de que momentos de plenitude e de ternura não logrem configurar cláusula
de perpetuidade, pois que, em torno de nós, há sempre o ostensivamente contingente
e efêmero, ou por outra, a morte, em seus mistérios, mantém-se à espreita, a
cada instante, de toda mescla orgânica de carne, ossos e sangue.
J.A.R. – H.C.
Lya Luft
(1938-2021)
Pressentimento
Quando eu era menina,
minha mãe tocava
piano
e a árvore de Natal
girava
em sua pinha de ferro
batido.
Eu cochilava no colo
de meu pai:
dentro do peito dele
pulsava
a máquina da vida que
nunca se cala.
(Mas uma coisa escura
e sorrateira
fazia rumor fora da
casa:
era o destino
chegando
passo a passo, e eu
não sabia.)
Junto ao coração de
meu pai,
ao ritmo da música do
sangue,
meu coração também
estremecia:
a faca cortando a
minha alma
era pressentir que as
águas do mundo
inundariam o tempo e
o espaço,
e seríamos um dia os
rostos naufragados
de um velho retrato
numa mala.
A noite anterior ao
Natal
(Sandra Kuck: artista
norte-americana)
Referência:
LUFT, Lya. Pressentimento. In: __________. Para não dizer adeus. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2005. p. 67.
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