Andresen aqui se
revela uma cultora de imagens da natureza, de uma natureza que é orgânica e patenteadora
da beleza que, em outra dimensão, humana por excelência, quer-se expressar em
epifanias de acalentados sonhos, mas que, então, se lhe revelam um “êxtase
perdido”, uma noite inatingível, diante do fardo implacável do mundo.
Inglório foi o propósito
da falante em conhecer os segredos da noite – aqueles distintivos que a tornam
harmoniosa e fascinante –, para vertê-los em uma “forma primitiva e pura” de
linguagem, em conteúdos mágicos, por meio de encantações e bruxedos, irredutíveis
a mais não poder, enquanto tradução veneranda de um mundo agora já tão desmitificado.
J.A.R. – H.C.
Sophia de M. B. Andresen
(1919-2004)
O Jardim e a Noite
Atravessei o jardim
solitário e sem lua,
Correndo ao vento
pelos caminhos fora,
Para tentar como
outrora
Unir a minha alma à
tua,
Ó grande noite
solitária e sonhadora.
Entre os canteiros
cercados de buxo,
Sorri à sombra
tremendo de medo.
De joelhos na terra
abri o repuxo,
E os meus gestos
foram gestos de bruxedo.
Foram os gestos dessa
encantação,
Que devia acordar do
seu inquieto sono
A terra negra dos
canteiros
E os meus sonhos
sepultados
Vivos e inteiros.
Mas sob o peso dos
narcisos floridos
Calou-se a terra,
E sob o peso dos
frutos ressequidos
Do presente,
Calaram-se os meus
sonhos perdidos.
Entre os canteiros
cercados de buxo,
Enquanto subia e caía
a água do repuxo,
Murmurei as palavras
em que outrora
Para mim sempre
existia
O gesto dum impulso.
Palavras que eu despi
da sua literatura,
Para lhes dar a sua
forma primitiva e pura,
de fórmulas de magia.
Docemente a sonhar
entre a folhagem
A noite solitária e
pura
Continuou distante e
inatingível
Sem me deixar
penetrar no meu segredo.
E eu senti
quebrar-se, cair desfeita,
A minha ânsia
carregada de impossível,
Contra a sua harmonia
perfeita.
Tomei nas minhas mãos
a sombra escura
E embalei o silêncio
nos meus ombros.
Tudo em minha volta
estava vivo
Mas nada pôde acordar
dos seus escombros
O meu grande êxtase
perdido.
Só o vento passou
pesado e quente
E à sua volta todo o
jardim cantou
E a água do tanque
tremendo
Se maravilhou
Em círculos,
longamente.
Em: “Poesia” (1944)
Dama em um jardim
(Edmund Blair
Leighton: pintor inglês)
Referência:
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. O jardim e a noite. In: __________. Obra poética. Lisboa, PT: Assírio & Alvim, 2015. p. 67-68.
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