Era um tempo a meio
entre o Natal e fim de ano, como agora, lá pelos idos dos anos 50 do século
passado, quando muitas “famílias da província” pegavam um trem noturno “para
passar o ano com os parentes de Lisboa”: tal é o mote em que se desenvolve este
poema de Júdice, bem descritivo em relação aos fatos presenciados pelo falante.
Sobressaem a
lembrança de comprar água às vendedoras ambulantes em Beja – por vezes
crianças, quando a mirada lírica resta compungida –, não pela água em si, senão
pela bilha que a acompanhava, bem assim do casal que se abraçava às proximidades.
Ali, como se os olhares dos miúdos “quisessem levar consigo o destino de cada
um de nós”, e aqui, a dar ensejo a que o “amor noturno” fosse “atirado ao rio, no
fim da noite, antes que a luz da madrugada caísse sobre o inverno de Lisboa”.
J.A.R. – H.C.
Nuno Júdice
(n. 1949)
No comboio correio
entre Beja e Lisboa
(fim dos anos 50)
Era o tempo em que o comboio
parava em todas
as estações: o
comboio correio, a caminho de lisboa,
levando famílias da
província para passar o ano
com os parentes de
lisboa. Nessas paragens,
quando se fazia o
silêncio
depois do guinchar
dos travões, o chefe da estação
anunciava o nome da
terra: terras que só existiam
de nome, para quem
viajava no comboio, à noite,
a caminho de lisboa,
e se reduziam a apeadeiros
de luz apagada no
meio do campo. Por vezes, entravam passageiros
com grandes malas e
cestos de fruta. Era a única animação
da carruagem
nocturna: vê-los encaixarem as malas
e os cestos, antes de
se sentarem em silêncio
nos bancos de madeira
desses comboios do inverno. Mas
na estação de beja
era diferente: era onde as vendedeiras
assaltavam as
carruagens, vendendo água em bilhas
de barro. Eu pedia
água, não por causa da água mas para ficar
com uma bilha de
barro, dessas que partem o gargalo à primeira,
mas que deixam na
boca um travo puro a terra. Às vezes,
quem vendia a água
eram crianças de samarra apertada
até ao pescoço. Não
diziam nada; e
passavam devagar, por
entre os bancos, olhando à direita
e à esquerda, como se
quisessem levar consigo
o destino de cada um
de nós. Pergunto-me, hoje, se
o meu não terá ido,
de facto, colado a um desses olhares; mas
lembro-me, depois, do
casal que se abraçava, à minha frente,
enquanto a noite ia
passando a caminho de lisboa. O seu destino,
esse, fui eu que o
roubei: o amor nocturno, num banco
de comboio, enquanto
o tempo passava entre beja e lisboa; e
atirei-o ao rio,
nessa noite fria entre o natal e o fim
do ano. Era o tempo
em que o comboio parava
em todas as estações,
o tempo em que o único destino do amor
era ser atirado à
água, no fim da noite, antes que
a luz da madrugada caísse sobre
o inverno de lisboa.
Em: “Teoria Geral do
Sentimento” (1999)
Panorâmica dos
monumentos antigos de Lisboa
(Elena Petrova
Gancheva: artista búlgara)
Referência:
JÚDICE, Nuno. No comboio correio entre Beja e Lisboa (fim dos anos 50). In: __________. Por dentro do fruto a chuva: antologia poética. Seleção, organização e prefácio de Vera Lúcia de Oliveira. São Paulo, SP: Escrituras, 2004. p. 115-116. (Coleção ‘Ponte Velha’)
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