Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Nuno Júdice - No comboio correio entre Beja e Lisboa (fim dos anos 50)

Era um tempo a meio entre o Natal e fim de ano, como agora, lá pelos idos dos anos 50 do século passado, quando muitas “famílias da província” pegavam um trem noturno “para passar o ano com os parentes de Lisboa”: tal é o mote em que se desenvolve este poema de Júdice, bem descritivo em relação aos fatos presenciados pelo falante.

 

Sobressaem a lembrança de comprar água às vendedoras ambulantes em Beja – por vezes crianças, quando a mirada lírica resta compungida –, não pela água em si, senão pela bilha que a acompanhava, bem assim do casal que se abraçava às proximidades. Ali, como se os olhares dos miúdos “quisessem levar consigo o destino de cada um de nós”, e aqui, a dar ensejo a que o “amor noturno” fosse “atirado ao rio, no fim da noite, antes que a luz da madrugada caísse sobre o inverno de Lisboa”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Nuno Júdice

(n. 1949)

 

No comboio correio entre Beja e Lisboa

(fim dos anos 50)

 

Era o tempo em que o comboio parava em todas

as estações: o comboio correio, a caminho de lisboa,

levando famílias da província para passar o ano

com os parentes de lisboa. Nessas paragens,

quando se fazia o silêncio

depois do guinchar dos travões, o chefe da estação

anunciava o nome da terra: terras que só existiam

de nome, para quem viajava no comboio, à noite,

a caminho de lisboa, e se reduziam a apeadeiros

de luz apagada no meio do campo. Por vezes, entravam passageiros

com grandes malas e cestos de fruta. Era a única animação

da carruagem nocturna: vê-los encaixarem as malas

e os cestos, antes de se sentarem em silêncio

nos bancos de madeira desses comboios do inverno. Mas

na estação de beja era diferente: era onde as vendedeiras

assaltavam as carruagens, vendendo água em bilhas

de barro. Eu pedia água, não por causa da água mas para ficar

com uma bilha de barro, dessas que partem o gargalo à primeira,

mas que deixam na boca um travo puro a terra. Às vezes,

quem vendia a água eram crianças de samarra apertada

até ao pescoço. Não diziam nada; e

passavam devagar, por entre os bancos, olhando à direita

e à esquerda, como se quisessem levar consigo

o destino de cada um de nós. Pergunto-me, hoje, se

o meu não terá ido, de facto, colado a um desses olhares; mas

lembro-me, depois, do casal que se abraçava, à minha frente,

enquanto a noite ia passando a caminho de lisboa. O seu destino,

esse, fui eu que o roubei: o amor nocturno, num banco

de comboio, enquanto o tempo passava entre beja e lisboa; e

atirei-o ao rio, nessa noite fria entre o natal e o fim

do ano. Era o tempo em que o comboio parava

em todas as estações, o tempo em que o único destino do amor

era ser atirado à água, no fim da noite, antes que

a luz da madrugada caísse sobre

o inverno de lisboa.

 

Em: “Teoria Geral do Sentimento” (1999)

 

Panorâmica dos monumentos antigos de Lisboa

(Elena Petrova Gancheva: artista búlgara)

 

Referência:

 

JÚDICE, Nuno. No comboio correio entre Beja e Lisboa (fim dos anos 50). In: __________. Por dentro do fruto a chuva: antologia poética. Seleção, organização e prefácio de Vera Lúcia de Oliveira. São Paulo, SP: Escrituras, 2004. p. 115-116. (Coleção ‘Ponte Velha’)


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