Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Matthew Arnold - A Vida Encoberta

Há poucos anos, o internauta João Victor Siqueira – em comentário a esta postagem –, indaga-me se conhecia alguma tradução ao português do poema “The Buried Life”, do poeta e crítico inglês Matthew Arnold. Na ocasião, apresentei-lhe um ‘link’ para um blog onde havia um trecho traduzido do referido poema.

 

Nesta oportunidade, trago uma versão completa ao português, mais rente à literalidade, dessas linhas de Arnold: elas nos falam de uma vida aquém de nossas possibilidades, a fluir desconhecida, oculta, incógnita num veio subterrâneo, e da qual, dolorosamente, acabamos por suspeitar em razão de nossa falta de direção ou de sentido.

 

Para superar tal ausência de uma orientação bem definida na vida, muitas vezes, aceleramos o fluxo de nossas atividades, nosso ritmo de ação, “redemoinhando na incerteza cega”, levando-nos a uma azáfama sem descanso, ou melhor, este apenas disponível em raras oportunidades.

 

Tal agitação frenética – tão fartamente enfatizada pela riqueza das impressões descritas pelo poeta – traz consigo um gatilho capaz de entorpecer nossos ouvidos, alienando-nos no silêncio ou na carência de contatos mais significativos com os pares.

 

Nesse estreito vínculo do ser humano com o tempo, nos limites impostos à existência, nesse correr estouvado e desarmônico dos dias, as etapas da vida são correlacionadas pelo falante a alguns reiterados acidentes geográficos consignados numa espécie de cartografia – veios subterrâneos, rios, colinas, mares.

 

Ao fim, resta-nos a sensação de que Arnold está a nos alertar para a fragilidade do ‘self’ na maioria das pessoas, sua rúptil individualidade, sua confrangida alma ou psique, um conhecimento insuficiente de si mesmo capaz de levar à perdição, certo óbice em se estar e se manter em situação de plenitude e equilíbrio.

 

J.A.R. – H.C.

 

Matthew Arnold

(1822-1888)

 

The Buried Life

 

Light flows our war of mocking words, and yet,

Behold, with tears mine eyes are wet!

I feel a nameless sadness o’er me roll.

Yes, yes, we know that we can jest,

We know, we know that we can smile!

But there’s a something in this breast,

To which thy light words bring no rest,

And thy gay smiles no anodyne.

Give me thy hand, and hush awhile,

And turn those limpid eyes on mine,

And let me read there, love! thy inmost soul.

 

Alas! is even love too weak

To unlock the heart, and let it speak?

Are even lovers powerless to reveal

To one another what indeed they feel?

I knew the mass of men conceal’d

Their thoughts, for fear that if reveal’d

They would by other men be met

With blank indifference, or with blame reproved;

I knew they lived and moved

Trick’d in disguises, alien to the rest

Of men, and alien to themselves – and yet

The same heart beats in every human breast!

 

But we, my love! – doth a like spell benumb

Our hearts, our voices? – must we too be dumb?

 

Ah! well for us, if even we,

Even for a moment, can get free

Our heart, and have our lips unchain’d;

For that which seals them hath been deep-ordain’d!

 

Fate, which foresaw

How frivolous a baby man would be –

By what distractions he would be possess’d,

How he would pour himself in every strife,

And well-nigh change his own identity –

That it might keep from his capricious play

His genuine self, and force him to obey

Even in his own despite his being’s law,

Bade through the deep recesses of our breast

The unregarded river of our life

Pursue with indiscernible flow its way;

And that we should not see

The buried stream, and seem to be

Eddying at large in blind uncertainty,

Though driving on with it eternally.

 

But often, in the world’s most crowded streets,

But often, in the din of strife,

There rises an unspeakable desire

After the knowledge of our buried life;

A thirst to spend our fire and restless force

In tracking out our true, original course;

A longing to inquire

Into the mystery of this heart which beats

So wild, so deep in us – to know

Whence our lives come and where they go.

And many a man in his own breast then delves,

But deep enough, alas! none ever mines.

And we have been on many thousand lines,

And we have shown, on each, spirit and power;

But hardly have we, for one little hour,

Been on our own line, have we been ourselves –

Hardly had skill to utter one of all

The nameless feelings that course through our breast,

But they course on for ever unexpress’d.

And long we try in vain to speak and act

Our hidden self, and what we say and do

Is eloquent, is well – but ‘t is not true!

And then we will no more be rack’d

With inward striving, and demand

Of all the thousand nothings of the hour

Their stupefying power;

Ah yes, and they benumb us at our call!

Yet still, from time to time, vague and forlorn,

From the soul’s subterranean depth upborne

As from an infinitely distant land,

Come airs, and floating echoes, and convey

A melancholy into all our day.

 

Only – but this is rare –

When a belovèd hand is laid in ours,

When, jaded with the rush and glare

Of the interminable hours,

Our eyes can in another’s eyes read clear,

When our world-deafen’d ear

Is by the tones of a loved voice caress’d –

A bolt is shot back somewhere in our breast,

And a lost pulse of feeling stirs again.

The eye sinks inward, and the heart lies plain,

And what we mean, we say, and what we would, we know.

A man becomes aware of his life’s flow,

And hears its winding murmur; and he sees

The meadows where it glides, the sun, the breeze.

 

And there arrives a lull in the hot race

Wherein he doth for ever chase

That flying and elusive shadow, rest.

An air of coolness plays upon his face,

And an unwonted calm pervades his breast.

And then he thinks he knows

The hills where his life rose,

And the sea where it goes.

 

Esplêndidas águas subterrâneas:

cenotes, lagos e rios

(Ted Wallace: artista canadense)

 

A Vida Encoberta

 

Nosso jogo de palavras trocistas flui leve, e, contudo,

Eis que meus olhos se encontram pejados de lágrimas!

Sinto uma tristeza sem nome a me dominar.

Sim, claro, bem sabemos que podemos nos distrair,

Sabemos, sem dúvida, que somos capazes de sorrir!

Mas há algo neste peito,

Ao qual tuas leves palavras não trazem descanso,

E teus sorrisos alegres não são anódinos.

Dá-me a tua mão, e cala-te um pouco,

E volve esses límpidos olhos aos meus,

Deixando-me neles ler, amor!, o mais íntimo de tua alma.

 

Ai de mim! Será que até o amor é fraco demais

Para destravar o coração e deixá-lo falar?

Será que mesmo os amantes são impotentes para revelar

Um ao outro o que realmente sentem?

Bem atinava que uma legião de homens escondia

Seus pensamentos, por medo de que, se revelados,

Seriam recebidos por outros homens

Com total indiferença ou com inclemente censura;

Sabia que viviam e se movimentavam

Enrustidos em disfarces, alheios ao resto

Dos homens e alheios a si mesmos – e, ainda assim,

O mesmo coração pulsa em cada peito humano!

 

Mas nós, meu amor! – acaso um feitiço semelhante entorpece

Nossos corações, nossas vozes? – devemos também ser tolos?

 

Ah! bom para nós, se mesmo nós,

Ainda que por um momento, pudermos libertar

Nosso coração e ter nossos lábios soltos;

Pois aquilo que os sela foi profundamente ordenado!

 

O destino, que entreviu

O quão frívolo um bebê se tornaria quando adulto –

Por quais distrações seria ele possuído,

Como se empenharia em cada refrega,

E quase mudaria sua própria identidade –

Que pudesse afastar do seu caprichoso jogo

O seu eu genuíno, forçando-o a obedecer

Mesmo em si próprio, não obstante a lei de seu ser,

Deliberou que, através dos recessos profundos de nosso peito,

O rio descuidado de nossa vida

Seguisse seu caminho com um fluxo indiscernível;

E que não devêssemos distinguir

Tal corrente subterrânea, fazendo-nos parecer

Que estamos à solta em uma incerteza cega,

Ainda que sigamos eternamente com ela.

 

Mas amiúde, nas ruas mais movimentadas do mundo,

Mas amiúde, no fragor da contenda,

Surge um inexprimível desejo

Após termos ciência de nossa vida encoberta;

Uma sede em expender nosso fogo e impetuosa força

Na persecução de nosso curso verdadeiro e original;

Um desejo de indagar

Sobre o mistério deste coração que bate

Tão indômito, tão profundamente em nós – para saber

De onde vêm e para onde vão nossas vidas.

E muitos homens em seu próprio peito então perscrutam;

Mas fundo o suficiente, infelizmente, nenhum jamais escava.

E percorremos muitos milhares de sendas,

E, em cada uma delas, ostentamos espírito e poder;

Mas quase não temos palmilhado, por uma hora que seja,

Nossa própria senda, temos sido nós mesmos –

Mal tivemos habilidade para expressar algum dentre todos

Os sentimentos sem nome que percorrem nosso peito,

Mas eles persistem para sempre impronunciados.

E por muito tempo tentamos em vão falar e agir

Com o nosso eu oculto, e o que dizemos e fazemos

É eloquente, bem está – mas não verdadeiro!

E então não mais seremos atormentados

Pela lida interior e a demanda

de todos os mil nadas da hora

com seu estupefaciente poder;

Ah, sim, e elas nos insensibilizam ante nosso reclamo!

Ainda assim, de vez em quando, vagos e desesperançados,

Guindados desde a subterrânea profundidade da alma,

Como de uma terra infinitamente distante,

Vêm ares, e ecos flutuantes, e transmitem

Melancolia a todos os nossos dias.

 

Somente – mas isso é raro –

Quando uma mão amada estreita a nossa,

Quando cansados da azáfama e do fulgor

Das horas intermináveis,

Nossos olhos habilitam-se a ler com clareza em outros olhos,

Quando os tons de uma voz amada

Acaricia nosso ouvido aturdido pelo mundo –

É que um raio dispara de novo nalgum lugar de nosso peito,

E um perdido latejo de sentimento outra vez se agita.

Os olhos penetram n’alma, e o coração fica à vista,

E o que queremos dizer, dizemo-lo, e o que almejamos,

sabemo-lo.

Um homem torna-se ciente do fluxo de sua vida,

E passa a ouvir o seu sinuoso murmúrio; e a ver

Os prados transpostos pelo sol e pela brisa.

 

E sobrevém uma pausa na acirrada corrida,

Na qual ele sempre persegue

Aquela sombra fugaz e elusiva – o descanso.

Um ar fresco toca o seu rosto

E uma calma incomum difunde-se em seu peito.

E então ele pensa conhecer

As colinas onde irrompeu a sua vida

E o mar por onde ela voga.

 

Referência:

 

ARNOLD, Matthew. The buried life. In: __________. Poems: new and complete edition in one volume. New York, NY: MacMillan and Co., 1878. p. 281-284.

Nenhum comentário:

Postar um comentário