Há poucos anos, o
internauta João Victor Siqueira – em comentário a esta postagem –, indaga-me se
conhecia alguma tradução ao português do poema “The Buried Life”, do poeta e
crítico inglês Matthew Arnold. Na ocasião, apresentei-lhe um ‘link’ para um
blog onde havia um trecho traduzido do referido poema.
Nesta oportunidade,
trago uma versão completa ao português, mais rente à literalidade, dessas
linhas de Arnold: elas nos falam de uma vida aquém de nossas possibilidades, a
fluir desconhecida, oculta, incógnita num veio subterrâneo, e da qual,
dolorosamente, acabamos por suspeitar em razão de nossa falta de direção ou de
sentido.
Para superar tal
ausência de uma orientação bem definida na vida, muitas vezes, aceleramos o
fluxo de nossas atividades, nosso ritmo de ação, “redemoinhando na incerteza
cega”, levando-nos a uma azáfama sem descanso, ou melhor, este apenas
disponível em raras oportunidades.
Tal agitação
frenética – tão fartamente enfatizada pela riqueza das impressões descritas
pelo poeta – traz consigo um gatilho capaz de entorpecer nossos ouvidos,
alienando-nos no silêncio ou na carência de contatos mais significativos com os
pares.
Nesse estreito
vínculo do ser humano com o tempo, nos limites impostos à existência, nesse
correr estouvado e desarmônico dos dias, as etapas da vida são correlacionadas
pelo falante a alguns reiterados acidentes geográficos consignados numa espécie
de cartografia – veios subterrâneos, rios, colinas, mares.
Ao fim, resta-nos a
sensação de que Arnold está a nos alertar para a fragilidade do ‘self’ na
maioria das pessoas, sua rúptil individualidade, sua confrangida alma ou psique,
um conhecimento insuficiente de si mesmo capaz de levar à perdição, certo óbice
em se estar e se manter em situação de plenitude e equilíbrio.
J.A.R. – H.C.
Matthew Arnold
(1822-1888)
The Buried Life
Light flows our war
of mocking words, and yet,
Behold, with tears
mine eyes are wet!
I feel a nameless
sadness o’er me roll.
Yes, yes, we know
that we can jest,
We know, we know that
we can smile!
But there’s a
something in this breast,
To which thy light
words bring no rest,
And thy gay smiles no
anodyne.
Give me thy hand, and
hush awhile,
And turn those limpid
eyes on mine,
And let me read
there, love! thy inmost soul.
Alas! is even love
too weak
To unlock the heart,
and let it speak?
Are even lovers
powerless to reveal
To one another what indeed
they feel?
I knew the mass of
men conceal’d
Their thoughts, for
fear that if reveal’d
They would by other
men be met
With blank
indifference, or with blame reproved;
I knew they lived and
moved
Trick’d in disguises,
alien to the rest
Of men, and alien to
themselves – and yet
The same heart beats
in every human breast!
But we, my love! – doth
a like spell benumb
Our hearts, our
voices? – must we too be dumb?
Ah! well for us, if
even we,
Even for a moment,
can get free
Our heart, and have
our lips unchain’d;
For that which seals
them hath been deep-ordain’d!
Fate, which foresaw
How frivolous a baby man would be
–
By what distractions he would be
possess’d,
How he would pour himself in every strife,
And well-nigh change
his own identity –
That it might keep
from his capricious play
His genuine self, and
force him to obey
Even in his own
despite his being’s law,
Bade through the deep
recesses of our breast
The unregarded river
of our life
Pursue with
indiscernible flow its way;
And that we should
not see
The buried stream,
and seem to be
Eddying at large in
blind uncertainty,
Though driving on
with it eternally.
But often, in the
world’s most crowded streets,
But often, in the din
of strife,
There rises an
unspeakable desire
After the knowledge
of our buried life;
A thirst to spend our
fire and restless force
In tracking out our
true, original course;
A longing to inquire
Into the mystery of
this heart which beats
So wild, so deep in
us – to know
Whence our lives come
and where they go.
And many a man in his
own breast then delves,
But deep enough,
alas! none ever mines.
And we have been on
many thousand lines,
And we have shown, on
each, spirit and power;
But hardly have we,
for one little hour,
Been on our own line,
have we been ourselves –
Hardly had skill to
utter one of all
The nameless feelings
that course through our breast,
But they course on
for ever unexpress’d.
And long we try in
vain to speak and act
Our hidden self, and
what we say and do
Is eloquent, is well
– but ‘t is not true!
And then we will no
more be rack’d
With inward striving,
and demand
Of all the thousand
nothings of the hour
Their stupefying
power;
Ah yes, and they
benumb us at our call!
Yet still, from time
to time, vague and forlorn,
From the soul’s
subterranean depth upborne
As from an infinitely
distant land,
Come airs, and
floating echoes, and convey
A melancholy into all
our day.
Only – but this is
rare –
When a belovèd hand
is laid in ours,
When, jaded with the
rush and glare
Of the interminable
hours,
Our eyes can in
another’s eyes read clear,
When our world-deafen’d
ear
Is by the tones of a
loved voice caress’d –
A bolt is shot back
somewhere in our breast,
And a lost pulse of
feeling stirs again.
The eye sinks inward,
and the heart lies plain,
And what we mean, we
say, and what we would, we know.
A man becomes aware
of his life’s flow,
And hears its winding
murmur; and he sees
The meadows where it
glides, the sun, the breeze.
And there arrives a
lull in the hot race
Wherein he doth for
ever chase
That flying and
elusive shadow, rest.
An air of coolness
plays upon his face,
And an unwonted calm
pervades his breast.
And then he thinks he
knows
The hills where his
life rose,
And the sea where it
goes.
Esplêndidas águas subterrâneas:
cenotes, lagos e rios
(Ted Wallace: artista
canadense)
A Vida Encoberta
Nosso jogo de
palavras trocistas flui leve, e, contudo,
Eis que meus olhos se
encontram pejados de lágrimas!
Sinto uma tristeza
sem nome a me dominar.
Sim, claro, bem
sabemos que podemos nos distrair,
Sabemos, sem dúvida,
que somos capazes de sorrir!
Mas há algo neste
peito,
Ao qual tuas leves
palavras não trazem descanso,
E teus sorrisos
alegres não são anódinos.
Dá-me a tua mão, e
cala-te um pouco,
E volve esses
límpidos olhos aos meus,
Deixando-me neles ler,
amor!, o mais íntimo de tua alma.
Ai de mim! Será que
até o amor é fraco demais
Para destravar o
coração e deixá-lo falar?
Será que mesmo os
amantes são impotentes para revelar
Um ao outro o que realmente
sentem?
Bem atinava que uma
legião de homens escondia
Seus pensamentos, por
medo de que, se revelados,
Seriam recebidos por
outros homens
Com total indiferença
ou com inclemente censura;
Sabia que viviam e se
movimentavam
Enrustidos em disfarces,
alheios ao resto
Dos homens e alheios
a si mesmos – e, ainda assim,
O mesmo coração pulsa
em cada peito humano!
Mas nós, meu amor! –
acaso um feitiço semelhante entorpece
Nossos corações,
nossas vozes? – devemos também ser tolos?
Ah! bom para nós, se
mesmo nós,
Ainda que por um
momento, pudermos libertar
Nosso coração e ter
nossos lábios soltos;
Pois aquilo que os
sela foi profundamente ordenado!
O destino, que entreviu
O quão frívolo um
bebê se tornaria quando adulto –
Por quais distrações
seria ele possuído,
Como se empenharia em
cada refrega,
E quase mudaria sua
própria identidade –
Que pudesse afastar
do seu caprichoso jogo
O seu eu genuíno, forçando-o
a obedecer
Mesmo em si próprio, não
obstante a lei de seu ser,
Deliberou que,
através dos recessos profundos de nosso peito,
O rio descuidado de
nossa vida
Seguisse seu caminho
com um fluxo indiscernível;
E que não devêssemos distinguir
Tal corrente
subterrânea, fazendo-nos parecer
Que estamos à solta
em uma incerteza cega,
Ainda que sigamos
eternamente com ela.
Mas amiúde, nas ruas
mais movimentadas do mundo,
Mas amiúde, no fragor
da contenda,
Surge um inexprimível
desejo
Após termos ciência
de nossa vida encoberta;
Uma sede em expender nosso
fogo e impetuosa força
Na persecução de
nosso curso verdadeiro e original;
Um desejo de indagar
Sobre o mistério
deste coração que bate
Tão indômito, tão
profundamente em nós – para saber
De onde vêm e para
onde vão nossas vidas.
E muitos homens em
seu próprio peito então perscrutam;
Mas fundo o
suficiente, infelizmente, nenhum jamais escava.
E percorremos muitos
milhares de sendas,
E, em cada uma delas,
ostentamos espírito e poder;
Mas quase não temos palmilhado,
por uma hora que seja,
Nossa própria senda, temos
sido nós mesmos –
Mal tivemos
habilidade para expressar algum dentre todos
Os sentimentos sem
nome que percorrem nosso peito,
Mas eles persistem
para sempre impronunciados.
E por muito tempo
tentamos em vão falar e agir
Com o nosso eu
oculto, e o que dizemos e fazemos
É eloquente, bem está
– mas não verdadeiro!
E então não mais seremos
atormentados
Pela lida interior e a
demanda
de todos os mil nadas
da hora
com seu estupefaciente
poder;
Ah, sim, e elas nos insensibilizam
ante nosso reclamo!
Ainda assim, de vez
em quando, vagos e desesperançados,
Guindados desde a subterrânea
profundidade da alma,
Como de uma terra
infinitamente distante,
Vêm ares, e ecos
flutuantes, e transmitem
Melancolia a todos os
nossos dias.
Somente – mas isso é
raro –
Quando uma mão amada
estreita a nossa,
Quando cansados da
azáfama e do fulgor
Das horas
intermináveis,
Nossos olhos habilitam-se
a ler com clareza em outros olhos,
Quando os tons de uma
voz amada
Acaricia nosso ouvido
aturdido pelo mundo –
É que um raio dispara
de novo nalgum lugar de nosso peito,
E um perdido latejo
de sentimento outra vez se agita.
Os olhos penetram n’alma,
e o coração fica à vista,
E o que queremos
dizer, dizemo-lo, e o que almejamos,
sabemo-lo.
Um homem torna-se
ciente do fluxo de sua vida,
E passa a ouvir o seu
sinuoso murmúrio; e a ver
Os prados transpostos
pelo sol e pela brisa.
E sobrevém uma pausa
na acirrada corrida,
Na qual ele sempre
persegue
Aquela sombra fugaz e
elusiva – o descanso.
Um ar fresco toca o
seu rosto
E uma calma incomum difunde-se
em seu peito.
E então ele pensa
conhecer
As colinas onde
irrompeu a sua vida
E o mar por onde ela voga.
Referência:
ARNOLD, Matthew. The
buried life. In: __________. Poems: new and complete edition in one
volume. New York, NY: MacMillan and Co., 1878. p. 281-284.
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