O poeta a tudo
contempla a partir de um ponto focal no futuro, quando se pressupõem já mais
aclarada a situação “turva” dos dias correntes, já então convertida em uma bela
“pérola” por meio de um “milagre” que a todos assombrará, quer compreendam quer
não o que isso significa, mediante o vislumbre da razão ou nem tanto, com o juízo
da própria alma ou sem ela – ou apenas por ouvirem dizer.
O poema, redigido no
início da década de 80 do século passado ou talvez um pouco antes, foi deixado
inédito pelo poeta. Naquela oportunidade, vivia o país ainda sob a ditatura
militar, tornando factível uma leitura capaz de dar suporte ao seu verso de
arremate (sem prejuízo de outras interpretações semelhantemente válidas): “Que
as águas mais turvas contêm às vezes as pérolas mais belas”.
J.A.R. – H.C.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
Acontecimento
Haverá na face de
todos um profundo assombro
E na face de alguns
risos sutis cheios de reserva
Muitos se reunirão em
lugares desertos
E falarão em voz
baixa em novos possíveis milagres
Como se o milagre
tivesse realmente se realizado
Muitos sentirão
alegria
Porque deles é o
primeiro milagre
E darão o óbolo do
fariseu com ares humildes
Muitos não
compreenderão
Porque suas
inteligências vão somente até os processos
E já existem nos
processos tantas dificuldades…
Alguns verão e
julgarão com a alma
Outros verão e
julgarão com a alma que eles não têm
Ouvirão apenas dizer…
Será belo e será
ridículo
Haverá quem mude como
os ventos
E haverá quem
permaneça na pureza dos rochedos
No meio de todos eu
ouvirei calado e atento, comovido e risonho
Escutando verdades e
mentiras
Mas não dizendo nada
Só a alegria de
alguns compreenderem bastará
Porque tudo aconteceu
para que eles compreendessem
Que as águas mais
turvas contêm às vezes as pérolas mais belas
Sem Título
(Eva Bee: ilustradora
inglesa)
Referência:
MORAES, Vinicius.
Acontecimento. In: HARAZIM, Dorrit (Ed.). Veja, 25 anos: reflexões para
o futuro. São Paulo, SP: Ed. Abril, [1993]. p. 236-237.
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