Tendo ao redor o belo
cenário da Cinelândia, no Rio de Janeiro (RJ), demarcado por prédios com arquitetura
de outros tempos – lembro-me, particularmente, de quatro deles, nomeadamente, o
Teatro Municipal, o Museu de Belas Artes, a Biblioteca Nacional e a Câmara
Municipal –, Drummond nos fala de um estado de paz dos homens simples, ali
presentes, acompanhados pelos inúmeros pombos, contumazes frequentadores da área.
Veja-se: o poema é
datado de 28.10.1962, e o “pacifismo” que então se observa, de um Rio de Janeiro
que até pouco tempo era a capital da República, já não se convalida nos dias
que correm, muito mais abespinhados: a Cinelândia, hoje, inspira certa
insegurança aos passantes, como, de resto, o centro da pólis – tomado pelos incontáveis
moradores de rua e por outras tantas “tribos” urbanas.
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de
Andrade
(1902-1987)
Os pacifistas
Na Cinelândia, pela
tarde,
em bancos vulgares e
amigos,
sentam-se homens mal
vestidos.
Não mostram pressa de
voltar
para casa ou para o
trabalho.
Sentam-se em honra de
uma vida
que vige dentro de
suas vidas
corriqueiras, pardas
e tristes,
e lá ficam a ver as
pombas
em torno à estátua de
Floriano
catando milho
distribuído
por um deus amigo das
aves,
o deus que no baixar
à Terra
preferiu o simples
disfarce
de empregado
administrativo.
Bicam as pombas,
esvoaçam
por entre mármores do
Teatro,
do Museu e da
Biblioteca.
Não que lhes
interessem óperas,
livros, telas, artes
humanas.
Brincam as pombas:
pena, cor,
lampejo entre
árvores, tranquilo
ser-existir infenso
ao trágico
mundo que se foi
modelando
entre gritos, gagos
regougos,
lágrimas, cóleras,
solércias,
à custa do mundo
essencial.
Libertados de todo
peso,
deixam-se os homens existir
desprevenidos junto
às pombas.
Silenciosos e
circunspectos,
são talvez os homens
melhores
de nosso tempo assim
parados.
Não pleiteiam bens ou
poderes
mais que o bem e o
poder de um banco
alteado no chão de
pedrinhas.
Não transportam a
guerra n’alma,
não vendem ódio, não
tocaiam
nem sofismam quem tem
razão
entre sem-razões
deste instante.
O voo não viageiro
basta-lhes
para alimento das
retinas
e, ao mirar as
pombas, remiram
uma harmonia que
perdemos.
Na Cinelândia, aves e
homens
redescobrem a paz, em
vida.
[28.10.1962]
Cinelândia – RJ
(Thiago Castro:
pintor carioca)
Referência:
ANDRADE, Carlos
Drummond. Os pacifistas. In: ANDRADE, Carlos Drummond de [et al.]. O melhor
da poesia brasileira: Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João
Cabral de Melo Neto e Vinicius de Moraes. 9. ed. Rio de Janeiro, RJ: José
Olympio, 2005. p. 38-39.
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