Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 25 de setembro de 2022

Carlos Drummond de Andrade - Os pacifistas

Tendo ao redor o belo cenário da Cinelândia, no Rio de Janeiro (RJ), demarcado por prédios com arquitetura de outros tempos – lembro-me, particularmente, de quatro deles, nomeadamente, o Teatro Municipal, o Museu de Belas Artes, a Biblioteca Nacional e a Câmara Municipal –, Drummond nos fala de um estado de paz dos homens simples, ali presentes, acompanhados pelos inúmeros pombos, contumazes frequentadores da área.

 

Veja-se: o poema é datado de 28.10.1962, e o “pacifismo” que então se observa, de um Rio de Janeiro que até pouco tempo era a capital da República, já não se convalida nos dias que correm, muito mais abespinhados: a Cinelândia, hoje, inspira certa insegurança aos passantes, como, de resto, o centro da pólis – tomado pelos incontáveis moradores de rua e por outras tantas “tribos” urbanas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

 

Os pacifistas

 

Na Cinelândia, pela tarde,

em bancos vulgares e amigos,

sentam-se homens mal vestidos.

Não mostram pressa de voltar

para casa ou para o trabalho.

Sentam-se em honra de uma vida

que vige dentro de suas vidas

corriqueiras, pardas e tristes,

e lá ficam a ver as pombas

em torno à estátua de Floriano

catando milho distribuído

por um deus amigo das aves,

o deus que no baixar à Terra

preferiu o simples disfarce

de empregado administrativo.

Bicam as pombas, esvoaçam

por entre mármores do Teatro,

do Museu e da Biblioteca.

Não que lhes interessem óperas,

livros, telas, artes humanas.

Brincam as pombas: pena, cor,

lampejo entre árvores, tranquilo

ser-existir infenso ao trágico

mundo que se foi modelando

entre gritos, gagos regougos,

lágrimas, cóleras, solércias,

à custa do mundo essencial.

Libertados de todo peso,

deixam-se os homens existir

desprevenidos junto às pombas.

Silenciosos e circunspectos,

são talvez os homens melhores

de nosso tempo assim parados.

Não pleiteiam bens ou poderes

mais que o bem e o poder de um banco

alteado no chão de pedrinhas.

Não transportam a guerra n’alma,

não vendem ódio, não tocaiam

nem sofismam quem tem razão

entre sem-razões deste instante.

O voo não viageiro basta-lhes

para alimento das retinas

e, ao mirar as pombas, remiram

uma harmonia que perdemos.

Na Cinelândia, aves e homens

redescobrem a paz, em vida.

 

[28.10.1962]

 

Cinelândia – RJ

(Thiago Castro: pintor carioca)

 

Referência:

 

ANDRADE, Carlos Drummond. Os pacifistas. In: ANDRADE, Carlos Drummond de [et al.]. O melhor da poesia brasileira: Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Vinicius de Moraes. 9. ed. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio, 2005. p. 38-39.

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