Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Donald Justice - Uma carta

O falante se reporta a uma carta que recebera de uma enferma de longa data – talvez padecendo, imagino, de uma doença mental –, a descrever a conjuntura em que se encontra no hospital, distante do burburinho e do tráfego da cidade, para onde espera um dia retornar, segundo a voz lírica, “dez anos mais velha, agora submissa, menos louca, menos bela”.

 

Os versos retratam uma vida pregressa movimentada da autora da missiva, desregrada até, haja vista os sinais de machucados pelo corpo e as metáforas empregadas pela voz lírica, insinuando a necessidade de que a dama apresente autocontrole, certo autodomínio perante os limites que o seu próprio fado impõe, pois, do contrário, poderá fazer parte, nalgum dia não tão distante, de um “cortejo fúnebre”  agora não mais de alguma celebridade com quem dormira algumas vezes.

 

J.A.R. – H.C.

 

Donald Justice

(1925-2004)

 

A letter

 

You write that you are ill, confused. The trees

Outside the window of the room they gave you

Are wet with tears each morning when they wake you

Out ofthe sleep you never quite fall into.

There is this dream oftraffic in your head

 

That stops and goes, and goes, and does not stop

Sometimes ali night, ali day. The motorcade

Winds past you like the funeral cortège

Of someone famous you had slept with, once or twice.

(Anotherfit of tears dampens the leaves, the page.)

 

You would expose your wounds, pull down your blouse,

Unbosom yourself wholly to the young doctor

Who has the power to sign prescriptions, passes,

Who seems to like you... And so to pass

Into the city once again, one ofus,

 

Hurrying by the damp trees of a park

Towards a familiar intersection where

The traffic signals warn you not to cross,

To wait, just as before, alone – but suddenly

Ten years older, tamed now, less mad, less beautiful.

 

Mulher em transe

(Victor Ehikhamenor: artista nigeriano)

 

Uma carta

 

Você escreve e se diz doente, confusa. As árvores

Ante a janela do quarto que lhe deram

Amanhecem úmidas de lágrimas quando lhe acordam

Do sono em que você nunca chega realmente a entrar.

Há em sua cabeça este sonho de tráfego

 

Que para e segue e não para,

Algumas vezes a noite inteira, o dia inteiro. O vendaval

De carros em desfile passa por você como cortejo fúnebre

De alguma celebridade com quem você dormiu uma ou

duas vezes.

(Outra remessa de lágrimas desalenta as folhas, a página.)

 

Você exporia suas feridas, baixaria a blusa,

Se revelaria integralmente ao jovem doutor

Que tem o poder de assinar prescrições, licenças,

E que parece gostar de você... E assim voltar

Para a cidade uma vez mais, ser uma de nós,

 

Precipitar-se por entre as desencorajadas árvores de um

parque

Até reencontrar um familiar cruzamento onde

Os sinais de trânsito lhe avisam que não atravesse,

Que espere, exatamente como antes, sozinha – porém

subitamente

Dez anos mais velha, agora submissa, menos louca, menos

bela.

 

Referência:

 

JUSTICE, Donald. A letter / Uma carta. Tradução de Jorge Wanderley. In: WANDERLEY, Jorge (Seleção, tradução e notas). Antologia da nova poesia norte-americana. Edição bilíngue. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1992. Em inglês: p. 258 e 260; em português: p. 259 e 261.

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