O falante se reporta
a uma carta que recebera de uma enferma de longa data – talvez padecendo,
imagino, de uma doença mental –, a descrever a conjuntura em que se encontra no
hospital, distante do burburinho e do tráfego da cidade, para onde espera um
dia retornar, segundo a voz lírica, “dez anos mais velha, agora submissa, menos
louca, menos bela”.
Os versos retratam uma vida pregressa movimentada da autora da missiva, desregrada até, haja vista os sinais de machucados pelo corpo e as metáforas empregadas pela voz lírica, insinuando a necessidade de que a dama apresente autocontrole, certo autodomínio perante os limites que o seu próprio fado impõe, pois, do contrário, poderá fazer parte, nalgum dia não tão distante, de um “cortejo fúnebre” – agora não mais de alguma celebridade com quem dormira algumas vezes.
J.A.R. – H.C.
Donald Justice
(1925-2004)
A letter
You write that you
are ill, confused. The trees
Outside the window of
the room they gave you
Are wet with tears
each morning when they wake you
Out ofthe sleep you
never quite fall into.
There is this dream
oftraffic in your head
That stops and goes,
and goes, and does not stop
Sometimes ali night,
ali day. The motorcade
Winds past you like
the funeral cortège
Of someone famous you
had slept with, once or twice.
(Anotherfit of tears
dampens the leaves, the page.)
You would expose your
wounds, pull down your blouse,
Unbosom yourself
wholly to the young doctor
Who has the power to
sign prescriptions, passes,
Who seems to like
you... And so to pass
Into the city once
again, one ofus,
Hurrying by the damp
trees of a park
Towards a familiar
intersection where
The traffic signals
warn you not to cross,
To wait, just as
before, alone – but suddenly
Ten years older,
tamed now, less mad, less beautiful.
Mulher em transe
(Victor Ehikhamenor:
artista nigeriano)
Uma carta
Você escreve e se diz
doente, confusa. As árvores
Ante a janela do
quarto que lhe deram
Amanhecem úmidas de
lágrimas quando lhe acordam
Do sono em que você nunca
chega realmente a entrar.
Há em sua cabeça este
sonho de tráfego
Que para e segue e
não para,
Algumas vezes a noite
inteira, o dia inteiro. O vendaval
De carros em desfile
passa por você como cortejo fúnebre
De alguma celebridade
com quem você dormiu uma ou
duas vezes.
(Outra remessa de
lágrimas desalenta as folhas, a página.)
Você exporia suas
feridas, baixaria a blusa,
Se revelaria
integralmente ao jovem doutor
Que tem o poder de
assinar prescrições, licenças,
E que parece gostar
de você... E assim voltar
Para a cidade uma vez
mais, ser uma de nós,
Precipitar-se por
entre as desencorajadas árvores de um
parque
Até reencontrar um
familiar cruzamento onde
Os sinais de trânsito
lhe avisam que não atravesse,
Que espere,
exatamente como antes, sozinha – porém
subitamente
Dez anos mais velha,
agora submissa, menos louca, menos
bela.
Referência:
JUSTICE, Donald. A
letter / Uma carta. Tradução de Jorge Wanderley. In: WANDERLEY, Jorge (Seleção,
tradução e notas). Antologia da nova poesia norte-americana. Edição
bilíngue. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1992. Em inglês: p. 258 e
260; em português: p. 259 e 261.
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