Carver praticamente
transcreve, na primeira parte deste poema, parte da missiva que Franz Kafka (1883-1924)
redigiu, em 8.10.1907, e endereçou a Hedwig Weiler (1888-1953), sua namorada quando
em férias em Trieste (IT). Os versos finais, entretanto, assomam como um olhar,
uma espécie de reflexão sobre o transcorrer do tempo, opressivamente demarcado por
contínuas e fatigantes horas de labor, fora das quais os dedos se apressam a
segurar a pena, dando largas à imaginação.
Em tempo: Kafka trabalhou,
por quase um ano, numa companhia de seguros italiana (“Assicurazioni Generali”),
e muito do que negativo se percebe em suas obras sobre o regime opressivo e
burocrático das atividades em escritórios decorre de tal experiência.
A propósito, se for
do interesse do leitor, sugiro que assista ao filme “Kafka”, de 1992, do diretor
Steven Soderbergh, com Jeremy Irons e Theresa Russell, no qual vida e obra se
misturam em cenas quase todas em preto e branco, exceto as das tomadas finais, coloridas,
como que a materializar os sonhos de fato não vivenciados pelo escritor tcheco.
J.A.R. – H.C.
Raymond Carver
(1938-1988)
Kafka’s Watch
from a letter
I have a job with a
tiny salary of 80 crowns, and
an infinite eight to
nine hours of work.
I devour the time
outside the office like a wild beast.
Someday I hope to sit
in a chair in another
country, looking out
the window at fields of sugarcane
or Mohammedan
cemeteries.
I don’t complain
about the work so much as about
the sluggishness of
swampy time. The office hours
cannot be divided up!
I feel the pressure
of the full eight or
nine hours even in the last
half hour of the day.
It’s like a train ride
lasting night and
day. In the end you’re totally
crushed. You no
longer think about the straining
of the engine, or
about the hills or
flat countryside, but
ascribe all that’s happening
to your watch alone.
The watch which you continually hold
in the palm of your
hand. Then shake. And bring slowly
to your ear in
disbelief.
Em: “Ultramarine”
(1986)
Franz Kafka
(Alexander Trifonov:
artista russo)
O Relógio de Kafka
de uma carta
Tenho um emprego com
um minúsculo salário de 80 coroas, e
uma jornada de oito a
nove horas intermináveis de trabalho.
Devoro o tempo fora
do escritório como uma animal selvagem.
Algum dia, espero quedar-me
num assento em um outro
país, olhando pela
janela os canaviais
ou os cemitérios
muçulmanos.
Não me queixo tanto
do trabalho quanto da
morosidade deste
tempo pantanoso. As horas do expediente
não podem ser fracionadas!
Sinto a pressão
dessas oito ou nove
horas completas, mesmo na última
meia hora do dia. É
como uma viagem de trem
que dura noite e dia.
Ao final, estás totalmente
fatigado. Já não
pensas mais no esforço
da locomotiva,
tampouco nas colinas ou
nas zonas rurais,
senão em atribuir tudo o que acontece
apenas ao teu relógio.
O relógio que seguras continuamente
na palma da tua mão.
Então o agitas. E o levas lentamente
ao teu ouvido,
incrédulo.
Em: “Ultramar” (1986)
Referência:
CARVER, Raymond. Kafka’s
watch. In: __________. Ultramarine: poems. New York, NY: Vintage, 1986. p.
69.
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