Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Raymond Carver - O Relógio de Kafka

Carver praticamente transcreve, na primeira parte deste poema, parte da missiva que Franz Kafka (1883-1924) redigiu, em 8.10.1907, e endereçou a Hedwig Weiler (1888-1953), sua namorada quando em férias em Trieste (IT). Os versos finais, entretanto, assomam como um olhar, uma espécie de reflexão sobre o transcorrer do tempo, opressivamente demarcado por contínuas e fatigantes horas de labor, fora das quais os dedos se apressam a segurar a pena, dando largas à imaginação.

 

Em tempo: Kafka trabalhou, por quase um ano, numa companhia de seguros italiana (“Assicurazioni Generali”), e muito do que negativo se percebe em suas obras sobre o regime opressivo e burocrático das atividades em escritórios decorre de tal experiência.

 

A propósito, se for do interesse do leitor, sugiro que assista ao filme “Kafka”, de 1992, do diretor Steven Soderbergh, com Jeremy Irons e Theresa Russell, no qual vida e obra se misturam em cenas quase todas em preto e branco, exceto as das tomadas finais, coloridas, como que a materializar os sonhos de fato não vivenciados pelo escritor tcheco.

 

J.A.R. – H.C.

 

Raymond Carver

(1938-1988)

 

Kafka’s Watch

 

from a letter

 

I have a job with a tiny salary of 80 crowns, and

an infinite eight to nine hours of work.

I devour the time outside the office like a wild beast.

Someday I hope to sit in a chair in another

country, looking out the window at fields of sugarcane

or Mohammedan cemeteries.

I don’t complain about the work so much as about

the sluggishness of swampy time. The office hours

cannot be divided up! I feel the pressure

of the full eight or nine hours even in the last

half hour of the day. It’s like a train ride

lasting night and day. In the end you’re totally

crushed. You no longer think about the straining

of the engine, or about the hills or

flat countryside, but ascribe all that’s happening

to your watch alone. The watch which you continually hold

in the palm of your hand. Then shake. And bring slowly

to your ear in disbelief.

 

Em: “Ultramarine” (1986)

 

Franz Kafka

(Alexander Trifonov: artista russo)

 

O Relógio de Kafka

 

de uma carta

 

Tenho um emprego com um minúsculo salário de 80 coroas, e

uma jornada de oito a nove horas intermináveis de trabalho.

Devoro o tempo fora do escritório como uma animal selvagem.

Algum dia, espero quedar-me num assento em um outro

país, olhando pela janela os canaviais

ou os cemitérios muçulmanos.

Não me queixo tanto do trabalho quanto da

morosidade deste tempo pantanoso. As horas do expediente

não podem ser fracionadas! Sinto a pressão

dessas oito ou nove horas completas, mesmo na última

meia hora do dia. É como uma viagem de trem

que dura noite e dia. Ao final, estás totalmente

fatigado. Já não pensas mais no esforço

da locomotiva, tampouco nas colinas ou

nas zonas rurais, senão em atribuir tudo o que acontece

apenas ao teu relógio. O relógio que seguras continuamente

na palma da tua mão. Então o agitas. E o levas lentamente

ao teu ouvido, incrédulo.

 

Em: “Ultramar” (1986)

 

Referência:

 

CARVER, Raymond. Kafka’s watch. In: __________. Ultramarine: poems. New York, NY: Vintage, 1986. p. 69.

Nenhum comentário:

Postar um comentário