O poeta fala de uma
criação artística desperta – um “vaso alado”, um poema, uma pintura ou que tais
–, a perdurar no tempo, em “quarta dimensão”, contemplada por leitores ou
estetas do futuro – desconhecedores “ainda do que serão e quem serão” –, em manifesto
resgate da presença do próprio artista, esse “brumoso mago” já adormecido.
É imerso em tamanho
oceano “temporal”, em cujas águas do passado, do presente e do futuro o poeta
se vê a modelar palavras, que esse continente “sonoro e imaterial”, essa ânfora
de “ríspido e persuasivo” talhe, se instala em outros éons, veloz como um “radar”,
a verter um azul sonâmbulo na sucessão de noites e dias.
J.A.R. – H.C.
Péricles E. da
S. Ramos
(1919-1992)
Futuro
4
Está dormindo aquele
que fez
este vaso alado,
azul-cobalto;
há mais de um século
repousa
aquele que moldou
este vaso cor do céu
noturno,
cor de noite
dissolvida em índigo.
Está dormindo e não
está,
brumoso mago,
o que na terra fez o
vaso:
possesso,
peremptório,
– parreira azul
de sonhos densos,
acordados –
a projetar na sala
uma nervosa,
persuasiva, ríspida
presença.
O vaso existe, tem a
vida
das coisas simples,
das amoras, das framboesas,
redondo (em voo
imóvel)
como o peito das
gaivotas:
paira no tempo, em
quarta dimensão,
vindo de tardes
anteriores;
e eis que se instala
no futuro,
azul como as futuras
noites,
veloz como o radar.
Vejo homens do futuro
olhando-o, esses que ainda
ignoram que serão e
quem serão.
Eu sei porém, eu fui
e sou; eu que serei,
tal como o vaso,
com o barro e a
espátula,
com minha prancha
azul de modelar palavras,
com este meu vaso tão
sonoro e imaterial
a derramar noite de
fonte sobre o dia, sobre a noite.
Gaivotas à beira-mar
(Felicity Steer:
artista australiana)
Referência:
RAMOS, Péricles
Eugênio da Silva. Futuro – 4. In: FIGUEIREDO, José Valle de (Compilador). Antologia
da poesia brasileira. Lisboa, PT: Editorial Verbo, s/d [197?]. p. 187-188.
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