Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 4 de setembro de 2022

Péricles Eugênio da Silva Ramos - Futuro – 4

O poeta fala de uma criação artística desperta – um “vaso alado”, um poema, uma pintura ou que tais –, a perdurar no tempo, em “quarta dimensão”, contemplada por leitores ou estetas do futuro – desconhecedores “ainda do que serão e quem serão” –, em manifesto resgate da presença do próprio artista, esse “brumoso mago” já adormecido.

 

É imerso em tamanho oceano “temporal”, em cujas águas do passado, do presente e do futuro o poeta se vê a modelar palavras, que esse continente “sonoro e imaterial”, essa ânfora de “ríspido e persuasivo” talhe, se instala em outros éons, veloz como um “radar”, a verter um azul sonâmbulo na sucessão de noites e dias.

 

J.A.R. – H.C.

 

Péricles E. da S. Ramos

(1919-1992)

 

Futuro

 

4

 

Está dormindo aquele que fez

este vaso alado,

azul-cobalto;

há mais de um século repousa

aquele que moldou

este vaso cor do céu noturno,

cor de noite dissolvida em índigo.

 

Está dormindo e não está,

brumoso mago,

o que na terra fez o vaso:

possesso, peremptório,

– parreira azul

de sonhos densos, acordados –

a projetar na sala

uma nervosa,

persuasiva, ríspida presença.

 

O vaso existe, tem a vida

das coisas simples, das amoras, das framboesas,

redondo (em voo imóvel)

como o peito das gaivotas:

paira no tempo, em quarta dimensão,

vindo de tardes anteriores;

e eis que se instala no futuro,

azul como as futuras noites,

veloz como o radar.

Vejo homens do futuro olhando-o, esses que ainda

ignoram que serão e quem serão.

Eu sei porém, eu fui e sou; eu que serei,

tal como o vaso,

com o barro e a espátula,

com minha prancha azul de modelar palavras,

com este meu vaso tão sonoro e imaterial

a derramar noite de fonte sobre o dia, sobre a noite.

 

Gaivotas à beira-mar

(Felicity Steer: artista australiana)

 

Referência:

 

RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Futuro – 4. In: FIGUEIREDO, José Valle de (Compilador). Antologia da poesia brasileira. Lisboa, PT: Editorial Verbo, s/d [197?]. p. 187-188.

Nenhum comentário:

Postar um comentário