Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Maria Rita Kehl - Materialismo Vulgar

Com um título aludindo à corrente filosófica surgida na Alemanha, em meados do século XIX, a defender a ideia da indissociabilidade entre força e matéria – ou, na vulgata, a noção de que o cérebro segrega o pensamento, da mesma maneira que o fígado segrega a bílis –, Maria Rita sonha em dar volta à tirania suscitada por nossa completa imersão no mundo do trabalho, em detrimento de uma agenda mais lúdica ou inventiva.

 

Com efeito, o propósito maior da poetisa campineira é desvelar o quanto o ‘modus vivendi’ em que estamos imersos, materialista até a medula, cerceia a livre manifestação da poesia, pois que nos rouba o tempo da mansuetude e da contemplação, necessárias para que ela se esparja pela senda do que de mais sublime o ser humano é capaz de manifestar.

 

J.A.R. – H.C.

 

Maria Rita Kehl

(n. 1951)

 

Materialismo Vulgar

 

Não é democrática a poesia.

Ela se esconde

(digamos)

se dificulta, fica

quase inacessível

para os que têm que acordar

pelas sete da manhã

(a menos que pinte

no banho

na pia

na pressa

no prato

na janta – mas aí

não passa de soluço

inacabado

entre a barriga e a garganta).

E o poeta sonha envergonhado

secreta ideia

que nada entende

de economia:

devolvam aos homens seu tempo

seu corpo

pois a poesia

devassa os sentidos

quando despertada

penetra a vontade

ou brota aos pedaços

em horas pouco indicadas.

Devolvam aos homens

seu tempo

seu corpo

e a poesia

será liberada.

 

Mix de flores numa cornucópia

(Thomas Robins: pintor inglês)

 

Referência:

 

KEHL, Maria Rita. Materialismo vulgar. In: SAVARY, Olga (Organização, seleção, notas e apresentação). Antologia da nova poesia brasileira. Rio de Janeiro, RJ: Fundação Rio / Hipocampo, 1992. p. 206.

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