Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Natália Correia - A Defesa do Poeta

Põe-se a poetisa portuguesa a oferecer a hipotéticos jurados a defesa de seu próprio mister – a criação poética –, lançando mão não exatamente de proposições teóricas que ressoariam fundo, enquanto argumentos, razões ou justificativas racionais, na mente de atilados destinatários, senão por meio da própria poesia, num poema dirigido, mais amplamente, a juízes e jurados, banqueiros, professores, tiranos e heróis.

A poesia, para Natália, é o alimento do sonho e, por tal motivo, não poderá (ou não deverá) ser sorvido na qualidade de um subalimento, porque ficaremos mal nutridos, insaciados de elemento essencial à vida – que, sem ele (ou ela, mais diretamente, a poesia), tornar-se-á uma áspera paisagem, sem aptidão para suscitar as flores necessárias a se suportar o império dos dias.

J.A.R. – H.C.

Natália Correia
(1923-1993)

A Defesa do Poeta

Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em criança que salvo
do incêndio da vossa lição

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.

Em: “As maçãs de Orestes” (1970)

Ilha das Nuvens
(Tom Hammick: pintor inglês)

Referência:

CORREIA, Natália. A defesa do poeta. In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (orgs.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p. 141-142.

Nenhum comentário:

Postar um comentário