Põe-se a poetisa portuguesa a oferecer a hipotéticos jurados a defesa de
seu próprio mister – a criação poética –, lançando mão não exatamente de
proposições teóricas que ressoariam fundo, enquanto argumentos, razões ou
justificativas racionais, na mente de atilados destinatários, senão por meio da
própria poesia, num poema dirigido, mais amplamente, a juízes e jurados,
banqueiros, professores, tiranos e heróis.
A poesia, para Natália, é o alimento do sonho e, por tal motivo, não
poderá (ou não deverá) ser sorvido na qualidade de um subalimento, porque
ficaremos mal nutridos, insaciados de elemento essencial à vida – que, sem ele
(ou ela, mais diretamente, a poesia), tornar-se-á uma áspera paisagem, sem aptidão para suscitar as flores necessárias a se suportar o império dos dias.
J.A.R. – H.C.
Natália Correia
(1923-1993)
A Defesa do Poeta
Senhores jurados sou
um poeta
um multipétalo uivo
um defeito
e ando com uma camisa
de vento
ao contrário do
esqueleto
Sou um vestíbulo do
impossível um lápis
de armazenado espanto
e por fim
com a paciência dos
versos
espero viver dentro
de mim
Sou em código o azul
de todos
(curtido couro de
cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos
felizes
Senhores banqueiros
sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o
parque
do sono que vos
roubei
Senhores professores
que pusestes
a prémio minha rara
edição
de raptar-me em
criança que salvo
do incêndio da vossa
lição
Senhores tiranos que
do baralho
de em pó volverdes
sois os reis
sou um poeta jogo-me
aos dados
ganho as paisagens
que não vereis
Senhores heróis até
aos dentes
puro exercício de
ninguém
minha cobardia é
esperar-vos
umas estrofes mais
além
Senhores três quatro
cinco e sete
que medo vos pôs por
ordem?
que pavor fechou o
leque
da vossa diferença
enquanto homem?
Senhores juízes que
não molhais
a pena na tinta da
natureza
não apedrejeis meu
pássaro
sem que ele cante
minha defesa
Sou uma impudência a
mesa posta
de um verso onde o
possa escrever
ó subalimentados do
sonho!
a poesia é para
comer.
Em: “As maçãs de Orestes” (1970)
Ilha das Nuvens
(Tom Hammick: pintor
inglês)
Referência:
CORREIA, Natália. A defesa do poeta. In:
COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (orgs.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de
Janeiro: Lacerda, 1999. p. 141-142.
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