Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 28 de julho de 2019

Carlos Drummond de Andrade - Um boi vê os homens

Um boi põe-se a contemplar os homens: ele é o falante do poema de Drummond e todas as suas observações têm como parâmetro de comparação a hipotética “vivência bovina”, daí porque tudo o que concerne à fragilidade de um “bípede desemplumado” não lhe escapa ao exame, pois temos os olhos inaptos a esconder as emoções que nos assolam a todo instante.

Os humanos somos a expressão do medo, da indecisão e de um frenesi incompreensível, incapazes de “formas calmas, permanentes e necessárias” de organização. E o pior: uma vez entristecidos, podemos chegar à crueldade – muito distintamente dos bois, que, regra geral, são criaturas plácidas, conhecem a sua força e têm o dom de entender a beleza que existe no mundo natural.

J.A.R. – H.C.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Um boi vê os homens

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm
e correm de um para o outro lado, sempre esquecidos
de alguma coisa. Certamente falta-lhes
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
até sinistros. Coitados, dir-se-ia que não escutam
nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes
e no rasto da tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão deles mora nos olhos – e perde-se
a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
Nada nos pelos, nos extremos de inconcebível fragilidade,
e como neles há pouca montanha,
e que secura e que reentrâncias e que
impossibilidade de se organizarem em formas calmas,
permanentes e necessárias. Têm, talvez,
certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitação incômoda e o translúcido
vazio interior que os torna tão pobres e carecidos
de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós?), sons que se despedaçam e tombam
no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.

Em: “Claro Enigma” (1951)

Homem com dois bois
(Edward M. Bannister: pintor canadense-americano)

Referência:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Um boi vê os homens. In: __________. Poesia 1930-62: de Alguma poesia a Lição das cosias. Edição crítica preparada por Júlio Castañon Guimarães. São Paulo, SP: Cosac Naify, 2012. p. 569.

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