Um boi põe-se a contemplar os homens: ele é o falante do poema de Drummond
e todas as suas observações têm como parâmetro de comparação a hipotética “vivência
bovina”, daí porque tudo o que concerne à fragilidade de um “bípede
desemplumado” não lhe escapa ao exame, pois temos os olhos inaptos a esconder
as emoções que nos assolam a todo instante.
Os humanos somos a expressão do medo, da indecisão e de um frenesi
incompreensível, incapazes de “formas calmas, permanentes e necessárias” de
organização. E o pior: uma vez entristecidos, podemos chegar à crueldade –
muito distintamente dos bois, que, regra geral, são criaturas plácidas,
conhecem a sua força e têm o dom de entender a beleza que existe no mundo
natural.
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Um boi vê os homens
Tão delicados (mais
que um arbusto) e correm
e correm de um para o
outro lado, sempre esquecidos
de alguma coisa.
Certamente falta-lhes
não sei que atributo
essencial, posto se apresentem nobres
e graves, por vezes. Ah,
espantosamente graves,
até sinistros. Coitados,
dir-se-ia que não escutam
nem o canto do ar nem
os segredos do feno,
como também parecem
não enxergar o que é visível
e comum a cada um de
nós, no espaço. E ficam tristes
e no rasto da
tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão
deles mora nos olhos – e perde-se
a um simples baixar
de cílios, a uma sombra.
Nada nos pelos, nos
extremos de inconcebível fragilidade,
e como neles há pouca
montanha,
e que secura e que
reentrâncias e que
impossibilidade de se
organizarem em formas calmas,
permanentes e
necessárias. Têm, talvez,
certa graça
melancólica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitação
incômoda e o translúcido
vazio interior que os
torna tão pobres e carecidos
de emitir sons
absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós?),
sons que se despedaçam e tombam
no campo
como pedras aflitas e
queimam a erva e a água,
e difícil, depois
disto, é ruminarmos nossa verdade.
Em: “Claro Enigma” (1951)
Homem com dois bois
(Edward M. Bannister:
pintor canadense-americano)
Referência:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Um boi vê os homens. In: __________. Poesia 1930-62: de Alguma poesia a Lição das cosias. Edição crítica preparada por Júlio Castañon Guimarães. São Paulo, SP: Cosac Naify, 2012. p. 569.
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