A figura imaginária de Quixote decantou definitivamente no mais fundo
eirado do inconsciente coletivo da humanidade: metaliteratura à exaustão se
produziu nesses mais de quatro séculos da obra de Cervantes, tudo para
expressar a simpatia, o fascínio, o risível e o picaresco no relato fantasioso
das desventuras do cavaleiro da triste figura e de seu fiel escudeiro.
Artur de Sales, poeta, escritor e tradutor baiano, dá-nos ciência dos infortúnios de Quixote no curto espaço das quatorze linhas de um soneto – e o faz
maravilhosamente, em sua linguagem peculiar, permeada por vocábulos infrequentes,
razão por que apresento rápida remissão ao sentido em que empregados no texto, logo
depois da transcrição do poema.
J.A.R. – H.C.
Artur de Sales
(1879-1952)
D. Quixote
Viste-o ao longe...
Era enorme... E o cavalo suarento
Estugaste, ferindo-o,
à vertigem dos passos,
E torres, barbacãs,
ponte, golpes, lançaços;
Tudo, a ruir e a
sangrar, queimou-te o olhar febrento...
E a armadura fizeste
em míseros pedaços,
E a lança despontaste
ao remesso violento...
Ah! não era um
castelo! Era um moinho de vento,
Doido, torcendo no ar
os desvairados braços.
Não mais... E
recolheste ao tugúrio deserto,
Das chufas, dos baldões
e de sangue coberto,
Mas, hoje, em
turbilhão, voava o pó do caminho:
Eras tu, eras tu,
galopando, sanhudo,
Com um resquício de
lança e um farrapo de escudo,
Pela planície
extensa, a arremeter um moinho.
Dom Quixote e Sancho
(Alexandre-Gabriel
Decamps: pintor francês)
Elucidário:
– Barbacãs: muros antepostos às
muralhas, com o objetivo de protegê-las dos
impactos da artilharia;
– Lançaços: arremetidas com
lanças;
– Tugúrio: casebre, choupana;
– Chufas: zombarias, caçoadas;
– Baldões: desventuras, azares;
– Sanhudo: feroz, indômito.
Referência:
SALES, Artur de. D. Quixote. In:
__________. Obra poética. Salvador,
BA: Mensageiro da Fé; Secretaria de Educação e Cultura, 1973. p. 143.
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