Sendo uma natureza-morta já se tem um quadro, de certa forma, excêntrico
– ou seria melhor dizer não dinâmico? Mas envolto por moscas, não seria tanto
assim estático, pois, ao revoar sobre as coisas que já não têm vida, os insetos
nos fazem recordar da natureza orgânica da matéria, sumarizada na Lei de
Lavoisier: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.
Parte da natureza-morta do poeta não é matéria propriamente dita, senão
rastros memoriais associados a um papel rasgado sobre a mesa, vale dizer, “amores,
ilusões, crimes e um beijo perplexo”, em síntese, “a vida embrulhada em tipos,
trapos e tripas”. Se houve crime, lá está a faca, mas sem gume, distante das
aspirações de uma vermelha maçã por dentes que a fustiguem...
J.A.R. – H.C.
Luiz Martins Rodrigues Filho
(1923-2001)
Natureza-Morta com Moscas
A faca sem gume
em cima da mesa.
A maçã vermelha
aspira a dentes
que marquem sua carne
envernizada e neutra.
A faca sem gume
em cima da mesa.
Moscas revoam compõem
a sua melodia
minúscula de moscas.
O papel rasgado
que mal forra a mesa
traz amores ilusões
crimes e um beijo
perplexo.
Traz toda a vida
embrulhada em tipos
embrulhada em trapos
embrulhada em tripas.
Mas serve agora
mal e mal para
forrar a mesa
onde se exilam a faca
sem gume
a inútil maçã
vermelha
e as moscas
com sua pobre
melodia de moscas.
1964
Natureza-morta com moscas aludindo à
“Natureza-morta com frutas e flores” de Isaak Soreau
(Alan Salisbury:
artista inglês)
Referência:
RODRIGUES FILHO, Luiz Martins. Natureza-morta com moscas. In: __________. Suor
do tempo: 1946-1979. São Paulo, SP: Canton, [1979?]. p. 55.
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