Um poema algo insólito, talvez dando vazão a desejos ocultos do poeta ou,
quem sabe – ante os óbices impostos pelo censor público –, que lhe tenha vindo
em sonhos, de forma a fazer fluir em sua mente inerte toda a massa represada de
pensamentos, sentimentos, intuições, libido, os quais, de outra forma, sob
vigília, foram atirados ao imenso mar do inconsciente – cujas águas vez por
outra os anjos da noite teimam em turbilhonar.
O interesse pela nudez e o pendor pela expressão mais aberta dos conteúdos
eróticos fizeram-me recordar algumas passagens da obra “Breve Romance de Sonho”,
do escritor e médico austríaco Arthur Schnitzler (1862-1931), adaptado
livremente ao cinema pelo diretor Stanley Kubrick, em sua película “De Olhos Bem
Fechados” (1999), com a dupla de atores Nicole Kidman e Tom Cruise.
J.A.R. – H.C.
André Carneiro
(1922-2014)
lei do corpo nu
Decretou-se a nudez
absoluta.
Ternos, gravatas,
coletes, porta-seios,
ligas, meias e
enchimentos
foram queimados
na praça principal.
Soldados nus,
metralhadoras em
punho,
revistaram casa por
casa.
Poupados os doentes
e recém-nascidos,
homens, senhoras e
meninas
desfilaram pelas ruas
carregando flores e
bandeiras.
Mulheres choravam
de seios caídos.
Homens assustados
contemplavam o sexo
descoberto, simples,
humilde
pálido condenado
circulando livre
após milênios
escondido.
Pegos em flagrante
com faixas, folhas
de parreira, alguns
foram fuzilados.
Corpos em liberdade
bronzearam ao sol,
namorados de mãos
dadas
passeavam cantando.
Amantes requintados
se encontravam em
apartamentos.
À beira do leito
lentamente, se
vestiam,
meias, calças,
cintas,
paletós, abrigos,
portas fechadas,
se abraçavam,
corações batendo.
Rondavam pelas ruas
soldados pelados
da polícia de
costumes.
Figura Nua
(Pablo Picasso: pintor
espanhol)
Referência:
CARNEIRO, André. lei do corpo nu. In:
CARNEIRO, André et al. a poesia pede
passagem. São Paulo, SP: Editora do Escritor, 1972. p. 6-7. (‘Coleção do
Poeta’; v. 3)
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