A linha de associação do poeta e de sua poesia ao momento mesmo da
criação divina, de sua beleza e fugacidade, e, paradoxalmente, de sua
eternidade pelo movimento cíclico, prossegue neste poema do vate mineiro
(1922-?): uma flor, um rio, o vento, um pássaro – tudo é fábula como um sonho,
mas, incontestavelmente, a mais palpável realidade.
De resto, o ato criador configura-se como uma revelação, um instante
epifânico, que tanto mais fascinante se torna quanto mais impõe relevância no
ser, em detrimento, talvez, da linguagem, muito embora a poesia mova-se num
campo de interação do pensamento e do sentimento com essa mesma linguagem, não
podendo, por conseguinte, dela ser inteiramente dissociada.
J.A.R. – H.C.
O Pintassilgo
(Carel Fabritius:
pintor holandês)
Poética (III)
De resto era caminhar
como um homem,
quando Deus falasse.
De resto
era estar no mundo
como um rio, uma flor
–
era estar no mundo
como um pássaro.
De resto
era saber de estréias
como se sabe
da direção dos
ventos;
de resto
era não saber de
nada.
De resto
era estar presente
e caminhar com
febres,
os lírios e os
cânticos:
que tudo anima,
embala
o poder de contenção,
a fábula:
nela, gravamos
nossas palavras
nosso medo e nosso
silêncio,
nossas descobertas:
de resto
somos a própria
fábula.
De resto
(quando Deus falasse)
era sermos
persuasivos,
afortunados seres
em trânsito: a
revelação
intuitiva, o amor
arraigado
e solidário.
De resto, era estar
vivo.
Em: “Revelação do Homem” (1963)
Lírios d’água
(Claude Monet: pintor
francês)
Referência:
BORGES, Wilson Alvarenga. Poética
(III). In: AYALA, Walmir (Seleção e Apresentação). A novíssima poesia brasileira. V. II. Rio de Janeiro, GB: Cadernos
Brasileiros, 1965. p. 124-125.
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