Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Paulo Mendes Campos - Hino à vida

O poeta exige a continuidade da vida, no limite, a qualquer preço, porque, segundo ele, “se parássemos, ouviríamos um estrondo e depois, perturbados, o silêncio do que somos”, deixando, dessa forma, transparecer certa apreensão com o que poderia sobrevir na contemplação estática e extática do mundo, caso concluíssemos por um niilismo inescapável.

Temos que “continuar continuando”, sem muito questionar, porque, como se costuma redarguir, se você parar poderá transformar-se num poste, e tudo que a “máquina palpitante” da natureza exige é que demos prosseguimento ao seu ciclo de nascimento e morte. Quanto ao mais, tudo se passará tão apenas na mente voluntariosa dos humanos!

J.A.R. – H.C.

Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

Hino à vida

Continuar a primeira palavra escrita,
Continuar a frase, não resigná-la
A temor, imperfeição, náusea,
Continuar com imenso trabalho
(Irreconhecível bosque do abstrato),
Doam os músculos e os cães ofeguem,
Continuar através do fogo e da água,
Em nome do fogo e da água,
Continuar desejando, farejando,
Por despeito e ambição continuar,
Não abrir muito os olhos,
Não cerrá-los demasiado,
Continuar por esta rua sem fé,
Como o cego devassado de um sol morto,
Como um anarquista de sensações,
Místico do prosseguimento,
Advogando a persistência, a engrenagem,
Continuá-las, ideia, sensibilidade, diferenças,
Porque não se pode parar,
Continuar com a paixão e sem ela,
Como um pugilista fatigado,
Com a disciplina da expedição guerreira,
A ferocidade histórica do saque,
Continuar, não desistir, não esmorecer,
Não refletir intensamente,
Acompanhando a órbita essencial da natureza,
Como os depósitos minerais,
A vida imperceptível do cristal,
A desagregação da vontade,
Como o crime caminhando onde, quando,
O explorado por um sentimento,
Um camelo magro,
Continuar, ó máquina palpitante, ó vida,
A comiseração não refreie o nosso hálito,
Continuar como um jogador que perde
E se parar há de faltar-lhe alento e vida,
Continuar continuando,
Como um soldado em guerra,
Um mensageiro de templo evangélico,
Um condenado à morte que-não-pode-morrer-antes-da-morte,
Um navio a fazer água,
Um rato, um gigante,
Porque seria perigoso demorar,
Ceder à tentação de um voo incalculável,
Porque a ideia do não continuar existe em nós,
Símbolo fechado, êmbolo de resoluções imprevistas,
Continuar, reação em cadeia de minutos incoerentes,
Chama que se alastra de momentos opacos,
Como os antecipados continuaram,
As águas míticas, o espírito da treva,
Continuar,
A despeito das humilhações, do medo,
Dos vagares do amor,
Continuar com as unhas, os pulmões, o sexo,
Sem medir a iniciativa e o resultado,
Sem comparar nossos poderes e os alheios,
Continuar como alguém, construindo e desmanchando,
Continuar como todas as ações continuam,
E no tempo se prolongam estranhamente,
Continuar porque não se pode senão continuar,
Emparedado entre dois tempos,
Toda a podridão do remorso,
Toda a vontade de não continuar,
E querer continuar,
Árido deste mundo,
Porque a vida é sempre a vida, a mesma vida.
Porque não se pode,
Porque, se parássemos, ouviríamos um estrondo
E depois, perturbados, o silêncio do que somos.

Campo de trigo com corvos
(Vincent van Gogh: pintor holandês)

Referência:

CAMPOS, Paulo Mendes. Hino à vida. In: __________. Poemas. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1984. p. 103-5.

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