O poeta exige a continuidade da vida, no limite, a qualquer preço,
porque, segundo ele, “se parássemos, ouviríamos um estrondo e depois,
perturbados, o silêncio do que somos”, deixando, dessa forma, transparecer
certa apreensão com o que poderia sobrevir na contemplação estática e extática do
mundo, caso concluíssemos por um niilismo inescapável.
Temos que “continuar continuando”, sem muito questionar, porque, como se
costuma redarguir, se você parar poderá transformar-se num poste, e tudo que a “máquina
palpitante” da natureza exige é que demos prosseguimento ao seu ciclo de nascimento
e morte. Quanto ao mais, tudo se passará tão apenas na mente voluntariosa dos
humanos!
J.A.R. – H.C.
Paulo Mendes Campos
(1922-1991)
Hino à vida
Continuar a primeira
palavra escrita,
Continuar a frase,
não resigná-la
A temor, imperfeição,
náusea,
Continuar com imenso
trabalho
(Irreconhecível
bosque do abstrato),
Doam os músculos e os
cães ofeguem,
Continuar através do
fogo e da água,
Em nome do fogo e da
água,
Continuar desejando,
farejando,
Por despeito e ambição
continuar,
Não abrir muito os
olhos,
Não cerrá-los
demasiado,
Continuar por esta
rua sem fé,
Como o cego devassado
de um sol morto,
Como um anarquista de
sensações,
Místico do
prosseguimento,
Advogando a
persistência, a engrenagem,
Continuá-las, ideia,
sensibilidade, diferenças,
Porque não se pode
parar,
Continuar com a
paixão e sem ela,
Como um pugilista
fatigado,
Com a disciplina da
expedição guerreira,
A ferocidade
histórica do saque,
Continuar, não
desistir, não esmorecer,
Não refletir intensamente,
Acompanhando a órbita
essencial da natureza,
Como os depósitos
minerais,
A vida imperceptível
do cristal,
A desagregação da
vontade,
Como o crime
caminhando onde, quando,
O explorado por um
sentimento,
Um camelo magro,
Continuar, ó máquina
palpitante, ó vida,
A comiseração não
refreie o nosso hálito,
Continuar como um
jogador que perde
E se parar há de
faltar-lhe alento e vida,
Continuar
continuando,
Como um soldado em
guerra,
Um mensageiro de
templo evangélico,
Um condenado à morte que-não-pode-morrer-antes-da-morte,
Um navio a fazer
água,
Um rato, um gigante,
Porque seria perigoso
demorar,
Ceder à tentação de
um voo incalculável,
Porque a ideia do não
continuar existe em nós,
Símbolo fechado,
êmbolo de resoluções imprevistas,
Continuar, reação em
cadeia de minutos incoerentes,
Chama que se alastra
de momentos opacos,
Como os antecipados
continuaram,
As águas míticas, o
espírito da treva,
Continuar,
A despeito das
humilhações, do medo,
Dos vagares do amor,
Continuar com as
unhas, os pulmões, o sexo,
Sem medir a
iniciativa e o resultado,
Sem comparar nossos
poderes e os alheios,
Continuar como
alguém, construindo e desmanchando,
Continuar como todas
as ações continuam,
E no tempo se
prolongam estranhamente,
Continuar porque não
se pode senão continuar,
Emparedado entre dois
tempos,
Toda a podridão do
remorso,
Toda a vontade de não
continuar,
E querer continuar,
Árido deste mundo,
Porque a vida é
sempre a vida, a mesma vida.
Porque não se pode,
Porque, se
parássemos, ouviríamos um estrondo
E depois,
perturbados, o silêncio do que somos.
Campo de trigo com corvos
(Vincent van Gogh:
pintor holandês)
Referência:
CAMPOS, Paulo Mendes. Hino à vida. In:
__________. Poemas. Rio de Janeiro,
RJ: Civilização Brasileira, 1984. p. 103-5.
❁
Atualissimo.
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