O poema, como todas as experiências tangíveis por que passamos, também
pode ser abordado em seus aspectos teóricos, os quais, por sua vez, nem sempre
são passíveis de elucidação racional – pois, como argumentam muitos exegetas da
matéria, há cuidados que se submetem aos versos que são puro reflexo do
inconsciente ou de estados irracionais – ou, talvez fosse melhor dizer, não
racionais.
Há ainda o que se submete à influência das gêneses predecessoras,
fazendo correr no tempo a pletora consorciada dos poemas sobre poemas, fazendo
o rio fluir e transbordar e “cavalgar a si mesmo”, na exuberância de um “cio
eterno” que, em sua finitude e transitoriedade, renasce cotidianamente sob a
forma de uma “labareda exausta” em sua “discreta língua de signos”.
J.A.R. – H.C.
Domingos Carvalho da Silva
(1915-2003)
Teoria do Poema
Este poema há tanto
tempo morto
sob o meu chão,
renasce como um grito
de labareda exausta,
água secreta,
e no papel projeta o
seu caminho.
O asilo do mar
procura o rio
que cedo abriu a
porta de sua casa
ou sepulcro onde
estava repartido
e no rumo da foz cava
uma estrada.
Que rios passam sob o
chão do poema
que no papel escorre
como as águas,
como as águas é fonte
e, como as águas,
é o que nele
inventamos e mais nada?
A mesma força que
impulsiona o poema
abriu a rua aos rios
e os arrasta
pra onde vão rimar
sua discreta
língua de signos em
estâncias de algas.
Que inventamos no
poema? – A manhã clara
de frágil
transparência, o amor perdido,
aqueduto de areia e
de palavras,
coisa móvel e morta
como um rio.
Inventamos o tempo
que dá às rosas
l’espace d’un matin, a suicida
amante do troiano, a
angústia oca,
o never more, a solidão vazia.
No mar renasce o
poema em arco-íris
ou nuvem que alimenta
o cio eterno
da terra, que gerou
no doce inferno
do ventre escuro o
girassol e os rios.
Eterno ou transeterno,
ardente ou frio,
é transitório sol e
deixa a marca
na inconstância das
águas este rio
que a si mesmo
cavalga na jornada.
Em: “Vida Prática” (1963-1976)
Esperando junto à fonte
(Vittorio Matteo
Corcos: pintor italiano)
Referência:
CARVALHO DA SILVA, Domingos. Teoria do
poema. In: __________. Múltipla escolha:
seleção de poemas. Introdução de Diana Bernardes. Rio de Janeiro, RJ: José
Olympio; Brasília, DF: INL, 1980. p. 140-141.
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