Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 13 de julho de 2019

Domingos Carvalho da Silva - Teoria do Poema

O poema, como todas as experiências tangíveis por que passamos, também pode ser abordado em seus aspectos teóricos, os quais, por sua vez, nem sempre são passíveis de elucidação racional – pois, como argumentam muitos exegetas da matéria, há cuidados que se submetem aos versos que são puro reflexo do inconsciente ou de estados irracionais – ou, talvez fosse melhor dizer, não racionais.

Há ainda o que se submete à influência das gêneses predecessoras, fazendo correr no tempo a pletora consorciada dos poemas sobre poemas, fazendo o rio fluir e transbordar e “cavalgar a si mesmo”, na exuberância de um “cio eterno” que, em sua finitude e transitoriedade, renasce cotidianamente sob a forma de uma “labareda exausta” em sua “discreta língua de signos”.

J.A.R. – H.C.

Domingos Carvalho da Silva
(1915-2003)

Teoria do Poema

Este poema há tanto tempo morto
sob o meu chão, renasce como um grito
de labareda exausta, água secreta,
e no papel projeta o seu caminho.

O asilo do mar procura o rio
que cedo abriu a porta de sua casa
ou sepulcro onde estava repartido
e no rumo da foz cava uma estrada.

Que rios passam sob o chão do poema
que no papel escorre como as águas,
como as águas é fonte e, como as águas,
é o que nele inventamos e mais nada?

A mesma força que impulsiona o poema
abriu a rua aos rios e os arrasta
pra onde vão rimar sua discreta
língua de signos em estâncias de algas.

Que inventamos no poema? – A manhã clara
de frágil transparência, o amor perdido,
aqueduto de areia e de palavras,
coisa móvel e morta como um rio.

Inventamos o tempo que dá às rosas
l’espace d’un matin, a suicida
amante do troiano, a angústia oca,
o never more, a solidão vazia.

No mar renasce o poema em arco-íris
ou nuvem que alimenta o cio eterno
da terra, que gerou no doce inferno
do ventre escuro o girassol e os rios.

Eterno ou transeterno, ardente ou frio,
é transitório sol e deixa a marca
na inconstância das águas este rio
que a si mesmo cavalga na jornada.

Em: “Vida Prática” (1963-1976)

Esperando junto à fonte
(Vittorio Matteo Corcos: pintor italiano)

Referência:

CARVALHO DA SILVA, Domingos. Teoria do poema. In: __________. Múltipla escolha: seleção de poemas. Introdução de Diana Bernardes. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio; Brasília, DF: INL, 1980. p. 140-141.

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