Nesta breve reflexão sobre o ofício de escrever poesias, o poeta chileno
dirige-se, quase sempre, aos que o detrataram, procurando diminuir-lhe os
méritos, sem o conseguir, obviamente! Porque Neruda atingiu um alto grau de
síntese em sua poesia, que somente os que contra ela – a poesia! – muito
lutaram, como Jacó em contenda com o Anjo do Senhor, mostram-se capazes de
atingir o estágio epifânico da revelação.
No meio termo entre a poesia realista e o primado do não racional, Neruda
soube cadenciar os versos num serpenteio por entre os celestinos redutos do
venerável, embora não descuidasse dos meandros mais prosaicos de que se revestem
nossas existências: há um dedo apontando para os vales da terra, há outro que
se dirige ao topo das montanhas!
J.A.R. – H.C.
Pablo Neruda
(1904-1973)
Versos Curtos e Longos
Como poeta ativo
combati meu próprio ensimesmamento. Por isso o debate entre o real e o
subjetivo foi determinado dentro do meu próprio ser. Minhas experiências podem
ajudar, sem pretensões de aconselhar ninguém. Vejamos à primeira vista os
resultados.
É natural que minha
poesia esteja submetida ao juízo, tanto da crítica elevada como exposta à
paixão do libelo. Isto faz parte das regras do jogo. Sobre este ponto da
discussão não tenho o que dizer, mas tenho argumento. Para a crítica
especializada, meu argumento são meus livros, minha poesia inteira. Para o
libelo incompatível tenho também o direito de argumentar com a minha própria e
constante criação.
Se o que digo parece
vaidoso vocês teriam razão. Em meu caso, trata-se da vaidade do artesão que
exercitou um ofício por longos anos com amor indelével.
Mas de uma coisa
estou satisfeito: de uma forma ou de outra fiz respeitar, pelo menos em minha
pátria, o ofício do poeta, a profissão da poesia.
No tempo em que
comecei a escrever, o poeta tinha duas características. Uns eram poetas – grandes-senhores,
que se faziam respeitar por seu dinheiro que os ajudava em sua legítima ou
ilegítima importância; a outra família de poetas era a dos militantes errantes da
poesia, gigantes de bar, loucos fascinantes, sonâmbulos atormentados. Fica
também, antes que eu me esqueça, a situação dos escritores acorrentados – como
os galés aos seus grilhões – ao banco dos réus da administração pública. Seus
sonhos foram quase sempre afogados por montanhas de papel timbrado e terríveis
temores à autoridade e ao ridículo.
Lancei-me à vida mais
nu do que Adão, mas disposto a manter a integridade de minha poesia. Esta
atitude irredutível não valeu somente para mim, mas também para que os
bobalhões deixassem de rir. Mas depois os ditos bobalhões, se tiveram coração e
consciência, renderam-se como bons seres humanos diante do essencial que meus
versos despertavam. E, se eram malignos, foram ficando com medo.
E assim a Poesia, com
maiúscula, foi respeitada. Não só a poesia como também os poetas foram
respeitados. Toda a poesia e todos os poetas.
Deste serviço à
cidadania estou consciente e este galardão não deixo que me seja arrebatado por
ninguém, porque gosto de carregá-lo como uma condecoração. Tudo o mais pode ser
discutido, mas isto que estou dizendo é a verdade nua e crua.
Os inimigos
obstinados do poeta esgrimirão com muitas argumentações que já não contam. A
mim me chamaram de morto de fome na minha juventude. Agora me hostilizam,
fazendo crer às pessoas que sou um potentado, dono de uma fabulosa fortuna que,
embora não tenha, gostaria de ter, entre outras coisas, para aborrecê-los mais.
Outros medem as
linhas de meus versos provando que os divido em pequenos fragmentos ou os
alongo demais. Não tem importância alguma. Quem institui os versos mais curtos
ou mais longos, mais delicados ou mais largos, mais amarelos ou mais vermelhos?
O poeta que os escreve é quem o determina. Determina-o com a respiração e com o
sangue, com sua sabedoria e com sua ignorância porque tudo isto entra no pão da
poesia.
O poeta que não seja
realista está morto. Mas o poeta que seja somente realista está morto também. O
poeta que seja somente irracional será entendido só por si mesmo e por sua
amada – e isto é bastante triste. O poeta que seja só um racionalista será
entendido até pelos asnos – e isto é também sumamente triste. Para tais
equações não existem cifras no quadro-negro, não há ingredientes decretados por
Deus nem pelo Diabo, mas sim que estes dois personagens importantíssimos mantêm
uma luta dentro da poesia e nesta batalha vence ora um e ora outro, mas a
poesia não pode ficar derrotada.
É claro que está
havendo um certo abuso no ofício de poeta. Aparecem tantos poetas novos e
incipientes poetisas que logo parecemos todos poetas, desaparecendo os
leitores. Teremos que ir buscar os leitores em expedições que atravessarão os
areais em camelos ou circulando pelo céu em astronaves.
A inclinação profunda
do homem é a poesia e dela saiu a liturgia, os salmos e também o conteúdo das
religiões. O poeta ousou contra os fenômenos da natureza e nas primeiras eras
se intitulou sacerdote para preservar sua vocação. Daí que na época moderna o
poeta, para defender sua poesia, tome a investidura que as ruas e as massas lhe
conferem. O poeta civil de hoje continua sendo o poeta do mais antigo
sacerdócio. Antes compactuou com as trevas e agora deve interpretar a luz.
Vanitas: natureza-morta com livros
(Jan Lievens: pintor
holandês)
Referência:
NERUDA, Pablo. Versos curtos e longos.
Tradução de Olga Savary. In: __________. Confesso
que vivi: memórias. Tradução de Olga Savary. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ:
Difel, 1977. p. 268-270.
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