Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Pablo Neruda - Versos Curtos e Longos

Nesta breve reflexão sobre o ofício de escrever poesias, o poeta chileno dirige-se, quase sempre, aos que o detrataram, procurando diminuir-lhe os méritos, sem o conseguir, obviamente! Porque Neruda atingiu um alto grau de síntese em sua poesia, que somente os que contra ela – a poesia! – muito lutaram, como Jacó em contenda com o Anjo do Senhor, mostram-se capazes de atingir o estágio epifânico da revelação.

No meio termo entre a poesia realista e o primado do não racional, Neruda soube cadenciar os versos num serpenteio por entre os celestinos redutos do venerável, embora não descuidasse dos meandros mais prosaicos de que se revestem nossas existências: há um dedo apontando para os vales da terra, há outro que se dirige ao topo das montanhas!

J.A.R. – H.C.

Pablo Neruda
(1904-1973)

Versos Curtos e Longos

Como poeta ativo combati meu próprio ensimesmamento. Por isso o debate entre o real e o subjetivo foi determinado dentro do meu próprio ser. Minhas experiências podem ajudar, sem pretensões de aconselhar ninguém. Vejamos à primeira vista os resultados.
É natural que minha poesia esteja submetida ao juízo, tanto da crítica elevada como exposta à paixão do libelo. Isto faz parte das regras do jogo. Sobre este ponto da discussão não tenho o que dizer, mas tenho argumento. Para a crítica especializada, meu argumento são meus livros, minha poesia inteira. Para o libelo incompatível tenho também o direito de argumentar com a minha própria e constante criação.
Se o que digo parece vaidoso vocês teriam razão. Em meu caso, trata-se da vaidade do artesão que exercitou um ofício por longos anos com amor indelével.
Mas de uma coisa estou satisfeito: de uma forma ou de outra fiz respeitar, pelo menos em minha pátria, o ofício do poeta, a profissão da poesia.
No tempo em que comecei a escrever, o poeta tinha duas características. Uns eram poetas – grandes-senhores, que se faziam respeitar por seu dinheiro que os ajudava em sua legítima ou ilegítima importância; a outra família de poetas era a dos militantes errantes da poesia, gigantes de bar, loucos fascinantes, sonâmbulos atormentados. Fica também, antes que eu me esqueça, a situação dos escritores acorrentados – como os galés aos seus grilhões – ao banco dos réus da administração pública. Seus sonhos foram quase sempre afogados por montanhas de papel timbrado e terríveis temores à autoridade e ao ridículo.
Lancei-me à vida mais nu do que Adão, mas disposto a manter a integridade de minha poesia. Esta atitude irredutível não valeu somente para mim, mas também para que os bobalhões deixassem de rir. Mas depois os ditos bobalhões, se tiveram coração e consciência, renderam-se como bons seres humanos diante do essencial que meus versos despertavam. E, se eram malignos, foram ficando com medo.
E assim a Poesia, com maiúscula, foi respeitada. Não só a poesia como também os poetas foram respeitados. Toda a poesia e todos os poetas.
Deste serviço à cidadania estou consciente e este galardão não deixo que me seja arrebatado por ninguém, porque gosto de carregá-lo como uma condecoração. Tudo o mais pode ser discutido, mas isto que estou dizendo é a verdade nua e crua.
Os inimigos obstinados do poeta esgrimirão com muitas argumentações que já não contam. A mim me chamaram de morto de fome na minha juventude. Agora me hostilizam, fazendo crer às pessoas que sou um potentado, dono de uma fabulosa fortuna que, embora não tenha, gostaria de ter, entre outras coisas, para aborrecê-los mais.
Outros medem as linhas de meus versos provando que os divido em pequenos fragmentos ou os alongo demais. Não tem importância alguma. Quem institui os versos mais curtos ou mais longos, mais delicados ou mais largos, mais amarelos ou mais vermelhos? O poeta que os escreve é quem o determina. Determina-o com a respiração e com o sangue, com sua sabedoria e com sua ignorância porque tudo isto entra no pão da poesia.
O poeta que não seja realista está morto. Mas o poeta que seja somente realista está morto também. O poeta que seja somente irracional será entendido só por si mesmo e por sua amada – e isto é bastante triste. O poeta que seja só um racionalista será entendido até pelos asnos – e isto é também sumamente triste. Para tais equações não existem cifras no quadro-negro, não há ingredientes decretados por Deus nem pelo Diabo, mas sim que estes dois personagens importantíssimos mantêm uma luta dentro da poesia e nesta batalha vence ora um e ora outro, mas a poesia não pode ficar derrotada.
É claro que está havendo um certo abuso no ofício de poeta. Aparecem tantos poetas novos e incipientes poetisas que logo parecemos todos poetas, desaparecendo os leitores. Teremos que ir buscar os leitores em expedições que atravessarão os areais em camelos ou circulando pelo céu em astronaves.
A inclinação profunda do homem é a poesia e dela saiu a liturgia, os salmos e também o conteúdo das religiões. O poeta ousou contra os fenômenos da natureza e nas primeiras eras se intitulou sacerdote para preservar sua vocação. Daí que na época moderna o poeta, para defender sua poesia, tome a investidura que as ruas e as massas lhe conferem. O poeta civil de hoje continua sendo o poeta do mais antigo sacerdócio. Antes compactuou com as trevas e agora deve interpretar a luz.

Vanitas: natureza-morta com livros
(Jan Lievens: pintor holandês)

Referência:

NERUDA, Pablo. Versos curtos e longos. Tradução de Olga Savary. In: __________. Confesso que vivi: memórias. Tradução de Olga Savary. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Difel, 1977. p. 268-270.

Nenhum comentário:

Postar um comentário