Cheio de imaginação – pois não creio que retrate literalmente uma
história que, de fato, tenha se passado, embora haja boa dose de plausibilidade
na narrativa –, Borges descreve as palavras de um hipotético guardião dos
livros sagrados do imperador, Hsiang, que, ironia das ironias, sequer sabia
ler.
Primeiramente, evocam-se as invasões dos tártaros do norte, montados em
potros pequenos, que a tudo deram fim, mas não aos livros, que foram salvos
pelo avô de Hsiang, agora recolhidos a uma torre onde se encontra o orador do
poema. Há, mais à frente, os hexagramas do I Ching, memórias, jardins, templos, mistérios astrais... e
segredos não revelados.
J.A.R. – H.C.
Jorge Luis Borges
(1899-1986)
El guardián de los libros
Ahí están los
jardines, los templos y la justificación de
los templos,
La recta música y las
rectas palabras,
Los sesenta y cuatro
hexagramas,
Los ritos que son la
única sabiduría
Que otorga el
Firmamento a los hombres,
El decoro de aquel
emperador
Cuya serenidad fue
reflejada por el mundo, su espejo,
De suerte que los
campos daban sus frutos
Y los torrentes
respetaban sus márgenes,
El unicornio herido
que regresa para marcar el fin,
Las secretas leyes
eternas,
El concierto del
orbe;
Esas cosas o su
memória están en los libros
Que custodio en la
torre.
Los tártaros vinieron
del Norte
en crinados potros
pequeños;
aniquilaron los
ejércitos
que el Hijo del Cielo
mandó para castigar su impiedad,
erigieron pirámides
de fugo y cortaron gargantas,
mataron al perverso y
al justo,
mataron al esclavo
encadenado que vigila la puerta,
usaron y olvidaron a
las mujeres
y siguieron al Sur,
inocentes como
animales de presa,
crueles como
cuchillos.
En el alba dudosa
el padre de mi padre
salvó los libros.
Aquí están en la
torre donde yazgo,
recordando los días
que fueron de otros,
los ajenos y
antiguos.
En mis ojos no hay
días. Los anaqueles
están muy altos y no
los alcanzan mis años.
Leguas de polvo y
sueño cercan la torre.
¿A qué engañarme?
La verdad es que
nunca he sabido leer,
pero me consuelo
pensando
que lo imaginado y lo
pasado ya son lo mismo
para un hombre que ha
sido
y que contempla lo
que fue la ciudad
y ahora vuelve a ser
el desierto.
¿Qué me impide soñar
que alguna vez
descifré la sabiduría
y dibujé con aplicada
mano los símbolos?
Mi nombre es Hsiang.
Soy el que custodia los libros,
que acaso son los
últimos,
porque nada sabemos
del Imperio
y del Hijo del Cielo.
Ahí están en los
altos anaqueles,
cercanos y lejanos a
un tiempo,
secretos y visibles
como los astros.
Ahí están los
jardines, los templos.
En: “Elogio de la sombra” (1969)
O Rato de Biblioteca
(Carl Spitzweg:
pintor alemão)
O guardião dos livros
Ali estão os jardins,
os templos e a justificação dos templos,
A música precisa, as
precisas palavras,
Os sessenta e quatro
hexagramas,
Os ritos que são a
única sabedoria
Que o Firmamento
concede aos homens,
O decoro daquele
imperador
Cuja serenidade foi
refletida pelo mundo, seu espelho,
De modo que os campos
davam seus frutos
E as torrentes
respeitavam suas margens,
O unicórnio ferido
que regressa para marcar o fim,
As secretas leis
eternas,
O concerto do orbe;
Essas coisas ou sua
memória estão nos livros
Que eu guardo na
torre.
Os tártaros vieram do
Norte
Em crinudos potros
pequenos;
Aniquilaram os
exércitos
Que o Filho do Céu
mandou para castigar sua impiedade,
Erigiram pirâmides de
fogo e cortaram gargantas,
Mataram o perverso e
o justo,
Mataram o escravo
acorrentado que vigia a porta,
Usaram e esqueceram
as mulheres
E seguiram para o
Sul,
Inocentes como o
animal que é a presa,
Cruéis como punhais.
Na aurora duvidosa
O pai de meu pai
salvou os livros.
Aqui estão na torre
em que, jazendo,
Recordo os dias que
foram de outros,
Os alheios e antigos.
Em meus olhos não há
dias. As prateleiras
São muito altas e meus
anos não podem alcançá-las.
Léguas de pó e sono
circundam a torre.
Para que me enganar?
A verdade é que eu
nunca soube ler,
Mas me consolo
pensando
Que o imaginado e o
passado são iguais
Para um homem que foi
E que contempla o que
foi a cidade
E agora volta a ser o
deserto.
O que me impede de
sonhar que um dia
Eu decifrei a
sabedoria
E desenhei com
aplicada mão os símbolos?
Meu nome é Hsiang.
Sou o que guarda os livros,
Que talvez sejam os
últimos,
Porque nada sabemos
do Império
E do Filho do Céu.
Ali estão nas altas
prateleiras,
Ao mesmo tempo perto
e distantes,
Secretos e visíveis
como os astros.
Ali estão os jardins,
os templos.
Em: “Elogio da sombra” (1969)
Referência:
BORGES, Jorge Luis. El guardián de los
libros / O guardião dos livros. Tradução de Josely Vianna Baptista. In:
__________. Poesia. Edição bilíngue.
Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2009.
Em espanhol: p. 442-443; em português: p. 53-54.
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