Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 27 de janeiro de 2019

Jorge Luis Borges - O guardião dos livros

Cheio de imaginação – pois não creio que retrate literalmente uma história que, de fato, tenha se passado, embora haja boa dose de plausibilidade na narrativa –, Borges descreve as palavras de um hipotético guardião dos livros sagrados do imperador, Hsiang, que, ironia das ironias, sequer sabia ler.

Primeiramente, evocam-se as invasões dos tártaros do norte, montados em potros pequenos, que a tudo deram fim, mas não aos livros, que foram salvos pelo avô de Hsiang, agora recolhidos a uma torre onde se encontra o orador do poema. Há, mais à frente, os hexagramas do I Ching, memórias, jardins, templos, mistérios astrais... e segredos não revelados.

J.A.R. – H.C.

Jorge Luis Borges
(1899-1986)

El guardián de los libros

Ahí están los jardines, los templos y la justificación de
los templos,
La recta música y las rectas palabras,
Los sesenta y cuatro hexagramas,
Los ritos que son la única sabiduría
Que otorga el Firmamento a los hombres,
El decoro de aquel emperador
Cuya serenidad fue reflejada por el mundo, su espejo,
De suerte que los campos daban sus frutos
Y los torrentes respetaban sus márgenes,
El unicornio herido que regresa para marcar el fin,
Las secretas leyes eternas,
El concierto del orbe;
Esas cosas o su memória están en los libros
Que custodio en la torre.

Los tártaros vinieron del Norte
en crinados potros pequeños;
aniquilaron los ejércitos
que el Hijo del Cielo mandó para castigar su impiedad,
erigieron pirámides de fugo y cortaron gargantas,
mataron al perverso y al justo,
mataron al esclavo encadenado que vigila la puerta,
usaron y olvidaron a las mujeres
y siguieron al Sur,
inocentes como animales de presa,
crueles como cuchillos.
En el alba dudosa
el padre de mi padre salvó los libros.
Aquí están en la torre donde yazgo,
recordando los días que fueron de otros,
los ajenos y antiguos.

En mis ojos no hay días. Los anaqueles
están muy altos y no los alcanzan mis años.
Leguas de polvo y sueño cercan la torre.
¿A qué engañarme?
La verdad es que nunca he sabido leer,
pero me consuelo pensando
que lo imaginado y lo pasado ya son lo mismo
para un hombre que ha sido
y que contempla lo que fue la ciudad
y ahora vuelve a ser el desierto.
¿Qué me impide soñar que alguna vez
descifré la sabiduría
y dibujé con aplicada mano los símbolos?
Mi nombre es Hsiang. Soy el que custodia los libros,
que acaso son los últimos,
porque nada sabemos del Imperio
y del Hijo del Cielo.
Ahí están en los altos anaqueles,
cercanos y lejanos a un tiempo,
secretos y visibles como los astros.
Ahí están los jardines, los templos.

En: “Elogio de la sombra” (1969)

O Rato de Biblioteca
(Carl Spitzweg: pintor alemão)

O guardião dos livros

Ali estão os jardins, os templos e a justificação dos templos,
A música precisa, as precisas palavras,
Os sessenta e quatro hexagramas,
Os ritos que são a única sabedoria
Que o Firmamento concede aos homens,
O decoro daquele imperador
Cuja serenidade foi refletida pelo mundo, seu espelho,
De modo que os campos davam seus frutos
E as torrentes respeitavam suas margens,
O unicórnio ferido que regressa para marcar o fim,
As secretas leis eternas,
O concerto do orbe;
Essas coisas ou sua memória estão nos livros
Que eu guardo na torre.

Os tártaros vieram do Norte
Em crinudos potros pequenos;
Aniquilaram os exércitos
Que o Filho do Céu mandou para castigar sua impiedade,
Erigiram pirâmides de fogo e cortaram gargantas,
Mataram o perverso e o justo,
Mataram o escravo acorrentado que vigia a porta,
Usaram e esqueceram as mulheres
E seguiram para o Sul,
Inocentes como o animal que é a presa,
Cruéis como punhais.
Na aurora duvidosa
O pai de meu pai salvou os livros.
Aqui estão na torre em que, jazendo,
Recordo os dias que foram de outros,
Os alheios e antigos.

Em meus olhos não há dias. As prateleiras
São muito altas e meus anos não podem alcançá-las.
Léguas de pó e sono circundam a torre.
Para que me enganar?
A verdade é que eu nunca soube ler,
Mas me consolo pensando
Que o imaginado e o passado são iguais
Para um homem que foi
E que contempla o que foi a cidade
E agora volta a ser o deserto.
O que me impede de sonhar que um dia
Eu decifrei a sabedoria
E desenhei com aplicada mão os símbolos?
Meu nome é Hsiang. Sou o que guarda os livros,
Que talvez sejam os últimos,
Porque nada sabemos do Império
E do Filho do Céu.
Ali estão nas altas prateleiras,
Ao mesmo tempo perto e distantes,
Secretos e visíveis como os astros.
Ali estão os jardins, os templos.

Em: “Elogio da sombra” (1969)

Referência:

BORGES, Jorge Luis. El guardián de los libros / O guardião dos livros. Tradução de Josely Vianna Baptista. In: __________. Poesia. Edição bilíngue. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2009. Em espanhol: p. 442-443; em português: p. 53-54.

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