O poeta vai até o limite daquilo que conhecemos como vida, para, de lá,
fazer projeções metafísicas, ou melhor, lançar indagações ao espírito ainda em
terra, preso à materialidade da carne, a experimentar as derradeiras sensações
nesta planície de átomos, que, ao fim e ao cabo, se reintegrarão ao “fluxo
universal da matéria”.
É quando olhamos para os efeitos projetados pelo tempo em nossos corpos que,
então, nos dedicamos a atribuir maior valor aos princípios a presidir a
existência, finita como tudo, mas sujeita à esperança de podermos continuá-la –
quem saberia afirmá-lo? – em outros planos de vida talvez mais venturosos.
J.A.R. – H.C.
Francisco Carvalho
(1927-2013)
Esboço de um poema metafísico
Em que lugar do corpo
se apascenta a alma dos homens?
Em que abismo do Ser
anda a balir a alma
ovelha tresmalhada?
Em que remota
possessão do corpo terá fundado
a alma seu império de
torres medievais?
Em que orla das
planícies do Sono
andará a alma
esquecida das eventualidades do corpo?
Quando pressentes a
Morte, silenciosamente emigras
para o limiar azul ou
te recolhes
à concha de areia
onde se evaporam as nossas sensações?
Que resta de ti
quando nada resta do corpo?
quando nada resta do
sonho?
quando nada resta de
tudo?
Que restará de ti
quando de nossas retinas se apagarem
os últimos vestígios
da memória luminosa do universo?
Que restará de ti
quando a vida
se escoar do coração
e quando todos os átomos
e células do nosso
corpo tiverem se reintegrado
no fluxo universal da
matéria?
Que restará de ti,
veio subterrâneo
de uma jazida que
resplandece no fundo de um poço?
Que restará de ti
quando o corpo não for mais corpo
nem um sistema
organizado de átomos
e quando esse
movimento, e esse dinamismo cristalino
e essa obstinada
simetria cessarem
repentinamente de
pulsar?
e toda a sua dinâmica
se calar para sempre?
e todo o seu ritmo de
água represada
como uma criança
vencida pelo sono
adormecer embalado
pelo ritmo de Deus?
Em Obras
(Sergey Rimoshevsky: pintor
bielorusso)
Referência:
CARVALHO, Francisco. Esboço de um poema
metafísico. In: __________. Quadrante solar: poesia. Prêmio Bienal Nestlé de Literatura
Brasileira 1982. 1. ed. São Paulo, SP: L. R. Editores, 1983. p. 25-26.
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