Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Francisco Carvalho - Esboço de um poema metafísico

O poeta vai até o limite daquilo que conhecemos como vida, para, de lá, fazer projeções metafísicas, ou melhor, lançar indagações ao espírito ainda em terra, preso à materialidade da carne, a experimentar as derradeiras sensações nesta planície de átomos, que, ao fim e ao cabo, se reintegrarão ao “fluxo universal da matéria”.

É quando olhamos para os efeitos projetados pelo tempo em nossos corpos que, então, nos dedicamos a atribuir maior valor aos princípios a presidir a existência, finita como tudo, mas sujeita à esperança de podermos continuá-la – quem saberia afirmá-lo? – em outros planos de vida talvez mais venturosos.

J.A.R. – H.C.

Francisco Carvalho
(1927-2013)

Esboço de um poema metafísico

Em que lugar do corpo se apascenta a alma dos homens?
Em que abismo do Ser anda a balir a alma
ovelha tresmalhada?
Em que remota possessão do corpo terá fundado
a alma seu império de torres medievais?
Em que orla das planícies do Sono
andará a alma esquecida das eventualidades do corpo?

Quando pressentes a Morte, silenciosamente emigras
para o limiar azul ou te recolhes
à concha de areia onde se evaporam as nossas sensações?
Que resta de ti quando nada resta do corpo?
quando nada resta do sonho?
quando nada resta de tudo?
Que restará de ti quando de nossas retinas se apagarem
os últimos vestígios da memória luminosa do universo?
Que restará de ti quando a vida
se escoar do coração e quando todos os átomos
e células do nosso corpo tiverem se reintegrado
no fluxo universal da matéria?

Que restará de ti, veio subterrâneo
de uma jazida que resplandece no fundo de um poço?
Que restará de ti quando o corpo não for mais corpo
nem um sistema organizado de átomos
e quando esse movimento, e esse dinamismo cristalino
e essa obstinada simetria cessarem
repentinamente de pulsar?
e toda a sua dinâmica se calar para sempre?
e todo o seu ritmo de água represada
como uma criança vencida pelo sono
adormecer embalado pelo ritmo de Deus?

Em Obras
(Sergey Rimoshevsky: pintor bielorusso)

Referência:

CARVALHO, Francisco. Esboço de um poema metafísico. In: __________. Quadrante solar: poesia. Prêmio Bienal Nestlé de Literatura Brasileira 1982. 1. ed. São Paulo, SP: L. R. Editores, 1983. p. 25-26.

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