As palavras, como pássaros, surgiram no amanhecer do poeta, ainda quando
criança, permitindo que a realidade se tornasse um mundo com potencial para ser
verbalizado – distintamente do enredo bíblico do Gênesis, segundo o qual tudo
quanto existe teria surgido como consequência do poder da enunciação divina: “no
início, era o verbo!”.
Mas agora, quando os seus dias se aproximam do fim, ou ainda,
metaforicamente, tomando as coisas no fluxo de um único dia, na proximidade do
ocaso, o poeta vê-se como uma árvore que atrai um bando de pássaros para passar
a noite, na plenitude do silêncio. Dir-se-ia então, por via de consequência, que
o verbo emudece!
J.A.R. – H.C.
Cassiano Ricardo
(1895-1974)
Anoitecer
Homem, cantava eu
como um pássaro
ao amanhecer. Em
plena unanimidade
de um mundo só.
Como, porém, viver
num mundo onde todas as coisas
tivessem um só nome?
Então, inventei as
palavras.
E as palavras
pousaram gorjeando sobre o rosto
dos objetos.
A realidade, assim,
ficou com tantos rostos
quantas são as
palavras.
E quando eu queria
exprimir a tristeza e a alegria
as palavras pousavam
em mim, obedientes
ao meu menor aceno
lírico.
Agora devo ficar
mudo.
Só sou sincero quando
estou em silêncio.
Pois, só quando estou
em silêncio
elas pousam em mim –
as palavras –
como um bando de
pássaros numa árvore
ao anoitecer.
Em: “Um dia depois do outro” (1947)
Marshmallow
(Rafal Olbinski:
pintor polonês)
Referência:
RICARDO, Cassiano. Anoitecer. In:
PONTIERO, Giovanni (Notes and Introduction). An anthology of brazilian modernist poetry. 1st. ed. Oxford, EN: Pergamon
Press, 1969. p. 96-97.
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Há muito tempo procurava esse poema que é de um lirismo irretocável. Finalmente encontrei-o e agradeço muito a postagem. A poesia lapida nossas arestas, humaniza o bruto. E essa, especialmente, expressa o que temos de mais humano: o poder das palavras.
ResponderExcluirPrezado(a): Um belo poema, sem dúvida. Agradeço o comentário e a navegação pelas páginas do blog.
ResponderExcluirUm abraço,
João A. Rodrigues.